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19/07/2020

Desembargador rasga multa por não usar máscara e humilha guarda em Santos

Por Eduardo Velozo Fuccia


Após ser flagrado andando pela praia de Santos (SP) sem máscara e dar pretensa aula com a lacônica frase “decreto não é lei”, o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira chamou de “analfabeto” o guarda municipal que o multou, rasgou a multa na sua frente e a jogou na areia.

O episódio aconteceu na tarde de sábado (18) e bastaram poucas horas para viralizar nas redes sociais e na imprensa. Ele foi gravado por um colega de farda do guarda humilhado e nem isso intimidou o desembargador. Siqueira compõe a 38ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). A corte e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apuram a conduta do desembargador.


Com discurso arrogante e prepotente, o membro do Judiciário paulista deu a famosa carteirada no guarda, constrangendo-o e tentando demovê-lo da iniciativa de aplicar a multa. Siqueira ainda telefonou para o secretário de Segurança de Santos, Sérgio Del Bel, para reclamar da conduta do agente municipal.

Com postura que não se afastou da urbanidade e serenidade, porém, permaneceu firme no cumprimento do seu dever funcional, o guarda lavrou o auto de infração. A multa que obriga o uso de máscara tem amparo em decreto municipal, a exemplo de decreto estadual e de lei federal, cujos objetivos não são suprimir direitos individuais, mas garantir a saúde de todos em época de pandemia do novo coronavírus.


Coronel reformado da Polícia Militar, Del Bel declarou “não conheço esse homem”, referindo-se ao desembargador, em entrevista ao jornal A Tribuna. O secretário da Segurança elogiou a forma como o guarda realizou a abordagem e conduziu a ocorrência. Por fim, criticou a postura do cidadão infrator, informando que ele foi multado por não usar máscara e por jogar lixo em via pública. Os valores das multas são, respectivamente, de R$ 100,00 e R$ 150,00.


CNJ e TJ-SP apuram

“O TJ-SP não compactua com atitudes de desrespeito às leis, regramentos administrativos ou de ofensas às pessoas. Muito pelo contrário, notadamente em momento de grave combate à pandemia instalada, segue com rigor as orientações técnicas voltadas à preservação da saúde de todos”, diz nota do Tribunal.

Entre essas orientações, é citada a “necessidade de uso de máscara em toda e qualquer situação”. Ainda conforme o comunicado, o TJ-SP requisitará a gravação original e, com brevidade, ouvirá o desembargador, o guarda ofendido e os demais envolvidos na ocorrência.


O ministro Humberto Martins, corregedor nacional de Justiça, instaurou de ofício “pedido de providências” e ordenou a intimação do desembargador Eduardo Siqueira para que, no prazo de 15 dias, preste informações sobre o ocorrido na praia de Santos.


“Os fatos podem caracterizar conduta que infringe os deveres dos magistrados estabelecidos na Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) e no Código de Ética da Magistratura”, justifica Martins, ao determinar a apuração do CNJ.

‘Francês pra inglês ver’

Não é a primeira vez que Siqueira é multado por não usar máscara na orla de Santos. Na primeira, entre maio e junho, de acordo com Del Bel, ele recebeu telefonema do desembargador. O magistrado afirmou que obteve o número do celular no TJ-SP, criticou a ação dos guardas que aplicaram a sanção administrativa e questionou a sua legalidade, ainda conforme o titular da pasta da Segurança.

Vídeo deste primeiro episódio também viralizou na internet e em aplicativos de mensagens. Na filmagem, um inspetor da Guarda Civil Municipal diz a Siqueira que a intenção da corporação é conscientizar as pessoas.

Em seguida, o inspetor destaca que o desembargador, por ser “muito mais esclarecido”, deveria compreender o trabalho dos agentes municipais. Sem disfarçar a soberba, Siqueira reage dizendo “é óbvio”, em relação ao seu grau de esclarecimento, e continua o diálogo falando em francês.

Bacharel em Letras, que já morou na França e tem o domínio do idioma daquele país, o jornalista Gustavo T. Miranda assistiu ao vídeo. Ele informa que o desembargador, inicialmente, perguntou se o inspetor fala francês.

Na sequência, o magistrado declarou possuir graduação na Universidade de Sorbonne, em Paris, onde dá aula de Direito de Família. No entanto, Miranda observa que Siqueira utilizou tempo verbal inadequado e “misturou” português com francês. “Ele só mandou um embromation”.

Lição de Direito

Advogado Especialista em Direito Administrativo, Processo Civil, Penal e Processual Penal, Marcus Vinicius Rosa explica que “o decreto do chefe do Executivo municipal é ordem cogente e obriga a todos que se encontrem no seu círculo de incidência (qualquer cidadão que circule na cidade correspondente). Portanto, é imperativo, não podendo, qualquer administrado (cidadão) recusar-se a cumprir ordem naquele contida, como o uso de máscara”.

De acordo com o advogado, a “autoexecutoriedade” revela que o ato (decreto) pode, desde já, ser executado e seu objeto imediatamente alcançado, sob pena de sanção (aplicação de multa). “O interesse público não pode esperar eventual interesse privado que a ele se opõe. Qualquer oposição a decreto (não quero, não vou usar a máscara etc) deve vir acompanhada de declaração judicial de ilegalidade e/ou inconstitucionalidade”.

“Contrariar o estabelecido, insurgindo-se ao seu cumprimento, caracteriza ato ilícito, institucionalizado como desobediência, pois a ordem, até ser declarada em contrário, é legítima e legal, logo, de observância obrigatória”, conclui Marcus Rosa.

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