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03/02/2023

Lanchonete deve indenizar mulher trans por proibir uso de banheiro feminino

Por Eduardo Velozo Fuccia

Em decisão unânime, a 3ª Turma Cível Recursal de Santos, no litoral de São Paulo, condenou a lanchonete Surf Dog a indenizar uma mulher transexual em R$ 30 mil, a título de dano moral, por constrangê-la quanto ao uso do banheiro feminino do estabelecimento. O acórdão é do último dia 1º de fevereiro.

“O princípio da dignidade da pessoa humana, previsto constitucionalmente, deve ser respeitado por todos, o que implica a necessária coibição de qualquer ato de transfobia, violência ou discriminação, ostensiva ou velada, desde o seio familiar até o ambiente de trabalho”, destacou o juiz relator Orlando Gonçalves de Castro Neto.

Para o juiz relator, o valor da indenização é “adequado, proporcional e razoável” ao fim a que se destina: compensar a dor sofrida pela recorrente e punir o causador do dano pelo ato ilícito e pela negligência na condução de seus negócios. A quantia deverá ser atualizada desde o arbitramento e acrescida de juros de mora de 1% ao mês desde o evento danoso.

Os juízes Renata Sanchez Guidugli Gusmão e Frederico dos Santos Messias seguiram o relator. A decisão do colegiado acolheu recurso inominado interposto pela cabeleireira Julie Correia de Araújo, de 29 anos, para reformar a decisão do juiz Guilherme de Macedo Soares, da 2ª Vara do Juizado Especial Cível (JEC) de Santos, que foi prolatada em 12 de setembro de 2022.

O caso de transfobia reconhecido pela 3ª Turma Cível não foi vislumbrado por Soares, para quem “tudo se tratou de um grande mal-entendido”. O juiz da 2ª Vara do JEC assinalou na sentença que, “em pesquisa em qualquer site da internet, verifica-se que existe de 30 a 50 tipos de gêneros, o que causa ainda maior embaraço e dificuldade”.

Entenda o caso

Na petição inicial foi narrado que Julie, no dia 11 de janeiro do ano passado, estava na lanchonete, localizada na Avenida Conselheiro Nébias, 835, no Boqueirão, acompanhada de amigos e familiares. Em dado momento, ela perguntou a um funcionário sobre a localização do banheiro feminino.

No entanto, o funcionário negou à cliente o uso do banheiro feminino, dizendo que ela é homem. Por ser mulher transgênero, Julie se dirigiu ao gerente da Surf Dog, que ratificou o que dissera o outro funcionário. Para cabeleireira, ela ficou em “situação constrangedora e humilhante” diante dos conhecidos e clientes do estabelecimento.

As próprias clientes direcionaram Julie ao banheiro feminino. Valendo-se desse fato, a defesa da lanchonete sustentou no processo que a autora da ação jamais foi impedida de utilizar o toalete das mulheres, “tanto que assim o fez”, e requereu a improcedência da ação ante a ausência de dano moral indenizável.

A 3ª Turma Cível aplicou o Código de Defesa do Consumidor e reconheceu a ocorrência de falha da lanchonete na prestação do serviço, o que impõe o dever de indenizar pelos danos produzidos. “Entendo que há inegável falha na prestação dos serviços no caso em tela, a qual gerou indiscutíveis danos à imagem, à moral e à honra de Julie”, pontuou o juiz relator.

Castro Neto também citou o artigo 932, inciso III, do Código Civil, que trata da responsabilidade objetiva do estabelecimento comercial perante os atos de seus empregados. Por fim, foi mencionado o artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal, que reprime todo tipo de discriminação, especialmente aquelas advindas da origem, raça, sexo, cor e idade.

Comparação infeliz

Dias após o episódio de transfobia, o dono da lanchonete, em entrevista a um veículo de imprensa, negou qualquer ato discriminatório à cliente. “Não sou contra ninguém, graças a Deus. A pessoa pode ser o que for. Ladrão, pu**, vi***. Homem, branco, preto, todo mundo é ser humano”, declarou. Porém, a reportagem surtiu efeito contrário ao comerciante.

Segundo o juiz relator, na entrevista, enquanto mulher transgênero, a cabeleireira foi comparada a “ladrão” pelo dono da lanchonete. “Isso bastaria para logo se concluir pela radical ofensa aos direitos da personalidade de Julie, humilhada em sua honra e imagem diante de amigos, familiares, consumidores e leitores das publicações jornalísticas”.

“As pessoas trans, como sujeitos de direitos que são, estão amparadas pelo princípio da dignidade da pessoa humana e são titulares dos direitos da personalidade (direito à intimidade e ao próprio corpo). A identidade de gênero é uma escolha pessoal que se dá no âmbito da subjetividade habitada e que deriva da autonomia privada dos indivíduos”, frisou o acórdão.

A decisão do colegiado lamentou o fato de Julie só ter conseguido utilizar o banheiro feminino “não sem antes peregrinar na busca por direito que jamais deveria ter sido violado, em ambiente de constrangimento e humilhação”. Quanto ao dano moral sofrido, o acórdão ressaltou que ele é in re ipsa, ou seja, presumido, porque deriva do próprio fato.

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