Juiz federal afasta sigilo de regra do CFM e autoriza mulher a doar óvulos a irmã
Por Eduardo Velozo Fuccia
A concretização do gesto de amor de uma mulher por uma irmã que não pode engravidar por meios naturais esbarrava em regra do Conselho Federal de Medicina (CFM). Provocada por elas para solucionar a demanda, a Justiça Federal autorizou uma a doar óvulos à outra e proibiu a autarquia de adotar medidas contra os médicos envolvidos no tratamento de reprodução assistida por suposta infração ético-disciplinar.
A sentença do juiz federal Gustavo Catunda Mendes, da 1ª Vara Federal de Caraguatatuba (litoral norte de São Paulo), é do último dia 19 e teve por fundamento o direito à vida previsto na Constituição. A decisão contemplou os anseios das irmãs A., de 37 anos, e M., de 32. Sem filhos, a primeira não pode engravidar por falência ovariana irreversível associada a endometriose pélvica e a múltiplos tratamentos cirúrgicos.
A mulher mais nova, conforme relatório médico, está “em faixa etária compatível com a doação de óvulos, com prole definida e em bom estado de saúde, disposta a passar pelo procedimento para doação de óvulos para a sua irmã”. Além deste documento, foi juntado ao processo parecer psicológico favorável ao procedimento. Este estudo avaliou a doadora, a receptora e o marido desta.
Barreira rompida
A razão de toda a controvérsia está na Resolução nº 2.168/2017 do CFM, cujo item IV, número 2, dispõe sobre a necessidade do anonimato entre o doador de gameta e o receptor, preservando o sigilo sobre tais identidades. Dispõe a regra: “IV – Doação de gametas ou embriões (…) 2 – Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa”.
O CFM invocou a sua própria resolução para contestar a pretensão das irmãs. Ele também alegou o seu receio, na hipótese de a ação ser julgada procedente, de “surgir figuras até então desconhecidas no mundo jurídico, tais como avó-mãe, tia-mãe, filho-sobrinho, filho-neto etc”. Porém, o juiz federal rechaçou os argumentos do órgão de classe, autorizando a doação de óvulos entre as autoras.
De acordo com Catunda Mendes, no caso em exame, deixar prevalecer regra da convenção do CFM e inviabilizar, “sob duvidosa invocação da ética e da moral”, o procedimento requerido pelas irmãs, seria “notável negação do amor e da fraternidade que envolve a doação de órgãos (óvulos) entre irmãs”. O juiz federal ainda citou que deve “imperar o direito à vida e a efetividade do planejamento familiar”.
Hierarquia das regras
O titular da 1ª Vara Federal de Caraguatatuba ponderou que a norma do CFM sobre a obrigatoriedade de sigilo entre doador e receptor, no caso das autoras, não pode prosperar, porque elas são irmãs, deram recíproco consentimento para a reprodução assistida e estão amparadas com laudos médico e psicológico favoráveis à realização do procedimento. Validar a regra do conselho, conforme o juiz, seria negar o direito à vida.
Catunda Mendes fundamentou que a norma acessória do CFM (direito ao sigilo entre doador e receptor) não deve preponderar sobre a norma principal (direito à vida) consagrada na Constituição Federal (Artigo 5º, caput e inciso X). Além disso, o Artigo 226 da Constituição estabelece que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
O juiz vislumbrou “extrapolação do poder normativo do CFM ao se estabelecer limites ao direito à vida, à saúde e ao planejamento familiar não previstos na Constituição Federal e em lei”. Por fim, frisou que a reprodução assistida pleiteada pelas irmãs não viola os preceitos éticos e morais da Medicina, soando “contraditória e inconsistente” a atuação do CFM enquanto órgão regulatório e fiscalizador da atuação dos profissionais da área.