Mídia abusa do direito de informar, identifica vítima de estupro e amplifica tragédia
Por Eduardo Velozo Fuccia (*)
Um dos assuntos mais comentados nessa semana no noticiário policial do País ocorreu no Guarujá (SP). Um advogado, ex-secretário municipal daquela cidade, matou a mãe com um tiro na cabeça e se suicidou em seguida da mesma forma. A tragédia aconteceu na casa da família e sobrou até para um cachorro, também encontrado morto. O cão foi vítima de provável envenenamento, porque não apresentava lesões aparentes.
Porém, como não há nada de ruim que não possa piorar, como diriam os pessimistas, o caso trouxe à tona a sua motivação. Ela é tão ou mais trágica que o próprio desfecho fatal que vitimou o advogado, a sua mãe (ex-delegada de polícia e também advogada) e o bicho de estimação. O autor dos disparos tomou a medida extrema pela pressão de ser investigado por estupro de vulnerável. Ele até confessou o abuso em carta à família.
O episódio aconteceu na terça-feira (17) à noite. Nessa data, pela manhã, investigadores cumpriram mandado de busca e apreensão na casa do advogado e recolheram um revólver e a nota fiscal de uma segunda arma, não localizada. O advogado não se encontrava na residência, mas por telefone foi informado sobre a diligência e compareceu à tarde na delegacia para entregar uma pistola calibre 9 milímetros.
Por ocasião da entrega da arma, o advogado perguntou a investigadores sobre o motivo da busca realizada em sua casa com ordem judicial, sendo informado que ela se referia a inquérito de estupro de vulnerável sobre o qual há segredo de Justiça. Na realidade, o que ele ouviu apenas confirmou o que já sabia ou desconfiava. O próprio mandado menciona o crime sexual e os policiais precisaram exibi-lo na hora do seu cumprimento.
Ainda durante a terça-feira, a seu pedido, o advogado foi exonerado do cargo de secretário de Modernização e Transformação Digital de Guarujá, conforme publicação no Diário Oficial do Município. Horas depois, os mesmos policiais que estiveram pela manhã no imóvel do protagonista da história retornaram ao local, desta vez, em razão do homicídio seguido de suicídio.
Não se pretende aqui censurar o trabalho jornalístico de colegas ou de veículos, que, sobretudo, é um dever e uma missão social. Os mais experientes já falavam que ‘não se briga com a notícia’ como forma de legitimar a divulgação de fatos, por mais terríveis, trágicos e tristes que sejam. No entanto, a reflexão que se busca recai sobre os limites da tarefa de informar.
No caso concreto, boa parte da mídia noticiou o assunto identificando a vítima do estupro de vulnerável. Sim, isso mesmo! Veículos de grande alcance disseram o sexo dela, a sua idade, o seu diagnóstico clínico e, por fim, a sua relação com o abusador. Com essa riqueza de dados, ainda que de forma indireta, houve, sim, a identificação de quem se encontra em situação de completa vulnerabilidade, bem como a dos seus responsáveis.
Tais informações eram imprescindíveis para a notícia? Ainda que fossem, elas se sobrepõem ao direito de quem foi brutamente violado e, agora, sofreu um processo de revitimização deflagrado pela imprensa? Esse drama da vida da real precisava ser exposto com a revelação de quem é a vítima do ataque sexual? O Jornalismo pode tudo? Audiência, cliques e o afã de mostrar que está inteirado justificam eventuais excessos?
Aspectos sociológicos, jurídicos e de outras áreas contribuem para essa discussão, que também caminha pelos campos da ética, do bom senso e da empatia. Mais do que fomentar um debate, o objetivo principal deste texto é gerar uma reflexão em todos os atores afetos ao tema, de ponta a ponta, seja nas redações – pauteiros, repórteres, editores e donos dos veículos, ou no ambiente acadêmico – alunos e professores.
Cabe salientar que a preservação da identidade da vítima de estupro por parte da imprensa não é um dever de difícil compreensão, ou não deveria ser. Ao contrário, essa obrigação chega a ser até óbvia. Ainda que pairasse uma mínima dúvida, bastaria as seguintes indagações: Essa informação é, de fato, relevante? A sua divulgação acarretaria prejuízos a quem foi abusado? Não e sim são as repostas. Alguém discorda?
Há de se ter muita cautela e responsabilidade com informações sensíveis ligadas à intimidade e à privacidade das pessoas, como é o caso dos crimes sexuais. Esse compromisso de cuidado se eleva quando se trata de menor de idade. A exceção seria nas hipóteses em que a própria personagem da notícia se propõe a falar e autoriza o uso da sua imagem, desde que seja adulta e tenha discernimento para consentir.
Também deve ser assinalado o efeito manada. Despidos de espírito crítico, na base do copia e cola, outros sites e perfis de redes sociais reproduziram as notícias sobre o caso do Guarujá que identificaram a vítima de estupro, potencializando os efeitos da tragédia. Na contramão, ou melhor, na direção de um Jornalismo sério, o Santa Portal noticiou o assunto com destaque, mas preservou quem tem direito e necessidade a total proteção.
Por falar em proteção, apenas para dar munição às reflexões individuais e debates, o parágrafo único do artigo 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sancionado há 34 anos, diz que “qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome”.
É verdade que essa regra diz respeito a “crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional”, conforme o caput do artigo. Porém, o fato de o legislador proteger os infratores menores de idade não significa que as vítimas em condição etária idêntica, em especial as de estupro, estejam excluídas dessa blindagem, independentemente do ECA ou qualquer outra lei. É de clareza solar que elas merecem igual, se não maior, proteção.
(*) Jornalista, advogado, editor do Vade News e autor dos livros Reportagem Policial – Um Jornalismo Peculiar (2008, Realejo) e Naldinho – Uma História sem Final (2014, All Print)
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