Advogado fala sobre o ‘direito do espetáculo’ e a ‘jurisprudência lotérica’ do STF
Por Eduardo Velozo Fuccia
A “espetacularização do processo penal”, nas palavras do advogado e professor Fabiano Pimentel, cria uma pressão no Poder Judiciário que pode interferir em decisões, em detrimento de princípios constitucionais como os da presunção de inocência e da soberania dos veredictos. Também influencia na relativização da ilicitude de provas e outros temas sensíveis, causando insegurança jurídica.
Autor de seis livros, entre os quais Processo Penal, que está em sua quarta edição, e professor dessa matéria na Universidade Federal da Bahia (Ufba) e Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Pimentel atribui ao “impacto midiático” duas recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), com intervalo de menos de um mês entre si, ambas relacionadas ao tribunal do júri.
De acordo com ele, o STF errou nas duas decisões, porque optou por “ouvir a voz das ruas”, decidindo de forma simpática aos anseios de parcela significativa da população, influenciada pela mídia. “É mais confortável o magistrado seguir o fluxo, a massa, mas isso gera insegurança jurídica. Além disso, afronta a Constituição Federal com a violação de princípios por ela consagrados, quando deveria resguardá-la”.
Vade News – O sr. fala em impacto midiático em certas decisões judiciais. Como isso ocorreria?
Fabiano Pimentel – As penas impostas aos acusados de crimes sempre atraíram a atenção da humanidade, desde a época das punições em praças públicas. Hoje, isso ocorre potencialmente, porque pelas telas de TV e celular, pelos portais de streaming chegam as notícias sobre os delitos e as suas respectivas decisões judiciais. A informação está viralizada e acontece rapidamente.
Vade News – Essa democratização da notícia não é algo bom?
Fabiano Pimentel – O problema não é o maior acesso à informação em si. O problema é a espetacularização do Direito Penal. Essa repercussão nos leva à violação de direitos fundamentais, como se houvesse uma luta do bem contra o mal. A população e o Judiciário absorvem a ideia de um punitivismo exacerbado, pela qual é necessário punir o criminoso a qualquer custo para defender o bem. Acaba-se desse modo com a presunção de inocência.
Vade News – Exemplos…
Fabiano Pimentel – A lava jato é um exemplo. Em seu início, as pessoas se reuniam diante da TV para acompanhar qual seria a prisão do dia. Foi criado um vale-tudo para combater a corrupção, com exageros e violações legais e constitucionais. Um juiz virou herói, quando o magistrado não deve ser protagonista do processo, mas apenas julgar com imparcialidade, com base nas provas dos autos e na legislação.
Vade News – É possível apontar a partir de quando a finada lava jato começou a sofrer a sua derrocada?
Fabiano Pimentel – Juiz e procuradores começaram a relativizar provas ilícitas para incriminar réus. Nesse caso, para eles, a ilicitude era justificada. Porém, quando vieram à tona diálogos entre autoridades da lava jato que favoráveis aos acusados, essas provas foram classificadas de ilícitas, não cabendo relativização. Dois pesos, duas medidas. Também houve uma banalização da prisão preventiva. O fundamento da garantia da ordem pública passou a ser usado para camuflar o interesse pela obtenção ilícita de provas. Decretava-se a custódia cautelar para forçar uma colaboração premiada. Porém, não há voluntariedade de quem está preso.
Vade News – Mais algum caso emblemático a ser citado?
Fabiano Pimentel – A Escola Base, na década de 90, em São Paulo, é um deles. O casal proprietário do colégio infantil foi acusado de violência sexual contra os alunos e depois se comprovou que isso não procedia, mas o estrago já estava feito na vida pessoal e empresarial dos investigados. O processo penal do espetáculo degenera, maltrata e até mata. O reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luís Carlos Cancellier de Olivo (afastado do cargo e preso sob a suspeita de desviar verbas da instituição), se suicidou porque não suportou as agruras do processo penal do espetáculo. Deixou escrito em um bilhete que ‘minha morte foi decretada no dia da minha prisão’.
Vade News – Nos últimos dias 12 de setembro e 2 de outubro, em julgamentos de repercussão geral, por maioria de votos, o STF decidiu que a condenação no júri autoriza a imediata execução da pena, independentemente da sanção aplicada, e que é possível se recorrer da absolvição lastreada no quesito genérico, sob a alegação de que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos. Concorda com esses posicionamentos da mais alta corte do País?
Fabiano Pimentel – O STF errou nos dois casos. Ele quis lançar decisões que melhor se acomodam à pretensa opinião popular, devido ao impacto midiático no processo penal, mas isso não é jurídico. Em curto espaço de tempo, em decisões contraditórias entre si, o Supremo invocou a soberania dos veredictos, inicialmente, para autorizar a imediata execução da pena no júri, desprezando a presunção de inocência. No entanto, em menos de um mês, o mesmo STF ignorou a mesma soberania dos veredictos para considerar válido o recurso da acusação contra a decisão dos jurados que absolve o réu no quesito genérico.
Vade News – No segundo caso, então, a soberania dos veredictos foi relativizada?
Fabiano Pimentel – Sim. Como a acusação vai arrazoar um recurso de apelação contra decisão supostamente contrária à prova dos autos, se os jurados leigos, por força legal, não motivam as suas decisões? Aliás, os julgadores leigos podem até absolver por clemência ou outra motivação desconhecida, fora dos próprios autos. No entanto, ao permitir recorrer, o STF decidiu em afronta ao princípio da soberania dos veredictos.
Vade News – Então, conforme o STF, a soberania só vale se houver condenação, para fins de início da execução da pena, mesmo sem a presença dos requisitos da prisão preventiva e com a possibilidade de o réu recorrer da sentença?
Fabiano Pimentel – O STF divergiu do seu próprio entendimento sobre o tema. Inicialmente, ele considerou que o artigo 492, inciso I, alínea “e” do Código de Processo Penal violava a presunção de inocência ao determinar, nos processos do júri, o início da execução da pena igual ou superior a 15 anos. Agora, ele deu uma guinada ao permitir a execução da pena, independentemente do seu quantum e da interposição de recurso, porque não haveria ofensa à inocência presumida antes do trânsito em julgado. Isso é a chamada jurisprudência lotérica, que pode mudar de novo com os próximos ministros.
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