Artigo: Tribunal de Justiça do Rio “fatia” investigação do esquema da rachadinha
Por James Walker Jr. (*)
A 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) nos deu quinta-feira (25/6) uma lição, não de Direito, mas de como o exercício da jurisdição pode ser contraditório.
A um só tempo, a decisão desafia jurisprudência consolidada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), na qual o foro privilegiado se exaure com a perda do cargo (por qualquer motivo), bem como “fatiou a (in)competência” do juízo da 27ª Vara Criminal do Rio.
Dito de outra forma, a decisão reconheceu que aquele juízo é incompetente, mas deferiu caráter de legalidade às decisões emanadas do próprio “juízo incompetente”, numa confusão que não se manterá, quando apreciada pelos tribunais superiores, vez que a matéria está, inclusive, pacificada no Informativo nº 900 do STF”.
Há quase 20 anos o tema já motivava debates importantes e complexos na Corte Suprema, determinando-se, inclusive, o cancelamento da Súmula 394 do STF, por meio do julgamento do Inquérito 687/SP.
Não se pode olvidar que em 2018, o STF, ao enfrentar a matéria, por meio do julgamento de questão de ordem na Ação Penal 937, decidiu que: 1º) a prerrogativa de foro se limita aos crimes cometidos no exercício do cargo e em razão dele; 2º) a jurisdição do STF se perpetua caso tenha havido o encerramento da instrução processual – leia-se: intimação das partes para apresentação das derradeiras alegações, antes da extinção do mandato.
Dessa forma, modulou-se o limite temporal de manutenção do foro, que somente se protrai no tempo na hipótese de intimação das partes para apresentação das alegações finais, ainda no exercício do cargo, o que não é o caso do ex-deputado.
Sendo assim, a decisão da 3ª Câmara Criminal, além de não se adequar à orientação do STF, desafia o entendimento da Corte Constitucional.
Nem que se fale da continuidade do exercício de cargo ou função detentora de foro especial pela alegada transição da posição de deputado estadual para senador da República, pois, ainda assim, a competência também não seria do Órgão Especial do TJ-RJ.
CONTEXTO DO FATO – A 3ª Câmara Criminal do TJ-RJ concedeu habeas corpus ao senador Flávio Bolsonaro, reconhecendo que ele tem direito a foro especial por prerrogativa de função no inquérito policial que investiga a sua suposta participação no esquema da rachadinha. Pela decisão colegiada, o inquérito distribuído à 27ª Vara Criminal do Rio foi transferido ao Órgão Especial do TJ-RJ, porque à época do esquema da rachadinha o filho “zero um” do presidente Jair Bolsonaro era deputado estadual do Rio de Janeiro. A rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) consistia no repasse a deputados de parte da remuneração recebida por detentores de cargos comissionados. No gabinete de Flávio Bolsonaro, o seu ex-assessor Fabrício Queiroz cuidaria do esquema. A investigação teve grande avanço com a recente prisão de Queiroz. Ele teve a preventiva decretada pelo juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal, que agora o TJ-RJ o considerou incompetente. Os desembargadores Paulo Rangel e Monica Tolledo votaram pela concessão do habeas corpus que conferiu foro especial ao senador. A posição, vencida, da desembargadora Suimei Cavalieri foi pela manutenção do inquérito da rachadinha em primeira instância.
A decisão da 3ª Câmara Criminal se escora em argumentos autofágicos, que duelam entre si, escancarando paradoxos argumentativos que, provavelmente, não se sustentarão.
De um lado, decretou a incompetência do juízo de primeiro grau, porém, mantendo-se os efeitos de atos anteriores que, por emanarem de juízo incompetente, deveriam ser declarados nulos.
Noutra via, inovou na tese (que desafia matéria pacificada no STF) da manutenção do foro por prerrogativa, em razão da alteração da função de deputado para o cargo de senador, ambos com prerrogativa. Aqui andou ainda pior a 3ª Câmara, pois, fosse isso possível, por óbvio, ainda assim a competência não seria do Órgão Especial do TJ-RJ.
Aos que acompanham os fatos, com interesse científico na questão jurídica, fica a expectativa de que a discussão chegue ao Supremo para reorganização do tema, que foi profundamente atarantado pelo julgamento da última quinta-feira.
(*) Advogado criminalista, professor, mestre e doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa, conselheiro da Seção Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), membro da Comissão de Direito Penal do IAB, presidente da Comissão de Anticorrupção e Compliance da OAB-RJ, presidente da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim).