“Vivemos em uma sociedade do espetáculo e até o crime virou reality show”
Por Eduardo Velozo Fuccia (*)
A palavra, tanto escrita quanto falada, foi e continua sendo a sua matéria-prima. Jornalista, radialista, cronista, professor ou deputado federal por dois mandatos, não importa, Vicente Fernandes Cascione, de 75 anos, é plural, mas nunca se afastou da advocacia criminal, seu cônjuge inseparável há 52 anos.
Escrever, falar, sobretudo, convencer. Para isso, palavras e mais palavras. Cascione não se afasta delas. Utiliza-as para contar histórias, informar, tentar provar as teses que sustenta em juízo. Já as usou muito mais ao lecionar e até para redigir regras que fazem parte da atual Carta Magna.
Em 1987, foi um dos juristas que assessorou a Comissão de Sistematização da Assembleia Nacional Constituinte, incumbida de elaborar a Constituição da República promulgada no ano seguinte. Na mesa principal do seu escritório, no Centro de Santos, sob sua fotografia com o Papa João Paulo II, Cascione faz uma retrospectiva da multifacetada carreira.
Palavras e mais palavras faladas e ouvidas. A entrevista exclusiva para A Tribuna dura mais de duas horas. Porém, o tempo passa rápido, flui. O diálogo começa e termina com tom de bate-papo. O desafio agora é registrar tudo em uma página de jornal. Embora haja a limitação de espaço, o alcance do vernáculo pode ir além. Quem ensina é o próprio Cascione.
Pode resumir a história da sua foto com o Papa João Paulo II?
Foi em janeiro de 1982, por meio de um funcionário do alto escalão da Embaixada do Brasil no Vaticano. Consegui agendar uma audiência privada. A primeira de João Paulo II, após o atentado a tiros que sofreu. Ele disse: “Benção para você e toda sua família”.
A sua atuação parlamentar na Câmara dos Deputados se deu em dois mandatos, de 1995 a 1998 e de 2003 a 2006? Qual foi a sua maior satisfação?
Ter mantido minha integridade, que não é a política que a tira de você. Mas consegui percorrer a minha carreira política como o lírio que brota no lodo, mas não se suja, porque a política, no mundo inteiro, é terreno fértil para ser desonesto. Essa impressão só senti agora, porque para mim sempre foi algo natural trabalhar honestamente. Mas também tem muita gente limpa.
E a maior desilusão?
Foi não ter realizado tudo quanto imaginava possível. Na Câmara dos Deputados existe um bloqueio, embora tenha conseguido aparecer pelo meu trabalho. Fui vice-líder do Governo (gestão Lula) e aí veio a decepção de alguns dizerem que havia virado petista, o que nunca fui. O meu papel era fazer a interlocução entre o Governo e o Parlamento, não atuar em prol de Lula e do PT. Atuei pelo Governo do meu País e fui contra o presidente quando achei que deveria, por exemplo, por ocasião da promulgação do Estatuto do Desarmamento, porque era contra à proibição do porte de arma de fogo.
Antes de ser eleito duas vezes deputado federal, já havia percorrido os corredores do Congresso Nacional, por ocasião da Assembleia Nacional Constituinte. Como foi esse período?
Integrei o grupo de juristas que assessorou a Comissão de Sistematização formada por deputados e senadores eleitos com a finalidade de elaborar a nova Constituição.
Embora o trabalho tenha sido de equipe, deixou algum legado em particular?
Foi de minha autoria a redação do inciso X do Artigo 5º (“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”). Também defendi incluir no texto constitucional a responsabilização penal das pessoas jurídicas nos crimes ambientais e contra a ordem econômica e financeira.
A redação do inciso X foi aceita integralmente, sem embargos?
Um dos juristas da Comissão de Sistematização (não quis revelar o nome), disse que havia pleonasmo no texto, afirmando serem a mesma coisa intimidade e vida privada. O deputado Ulysses Guimarães pediu para que eu justificasse a diferença e expliquei que a intimidade envolve um círculo de pessoas muito menor do que a vida privada. Aquela envolve uma situação conjugal ou até mesmo uma só pessoa, por exemplo. Esta recai sobre um grupo maior, em um evento restrito, mas não tão fechado, como uma festa de aniversário na casa de alguém.
A explicação convenceu?
Sim, porque o Dr. Ulysses falou: “Fulano, você perdeu uma boa oportunidade de ficar calado”.
A sua carteira da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) tem o número 18.377. Atualmente, no Estado de São Paulo, já são mais 411 mil advogados inscritos na Ordem. Neste mês, a Subseção de Santos da OAB o homenageou durante solenidade de entrega de carteiras a um grupo de novos advogados, como exemplo a ser seguido pelos colegas. Após 52 anos de carreira, isso ainda o emociona?
Fui às lágrimas. A gente recebe muitas injustiças ao longo da vida e elas não se cicatrizam. Então, cada vez que recebo o reconhecimento dos meus pares, as feridas podem continuar abertas, mas sou anestesiado e tenho um alívio da dor.
Pode citar os casos mais marcantes de sua atuação profissional enquanto advogado?
Um deles foi a defesa que fiz da técnica da nadadora Renata Câmara Agondi, no Tribunal de Douai, na França. Renata morreu durante a travessia do Canal da Mancha e a técnica foi processada por omissão de socorro. Demonstramos que ela não teve culpa, mas sim dois barqueiros incumbidos de dar o suporte à atleta. O outro caso foi a sustentação oral feita no Tribunal de Justiça de São Paulo, por ocasião do julgamento do recurso de apelação do coronel reformado da Polícia Militar, Ubiratan Guimarães (na foto acima, Ubiratan, Cascione e Fuccia). Condenado pelo júri popular a 632 anos de reclusão em razão do episódio conhecido como Massacre do Carandiru (no qual foram contabilizadas 111 mortes de presos), o coronel saiu inocentado do TJ.
No Brasil, o país do futebol, boa parte dos brasileiros ignora, em ano de Copa do Mundo, a escalação da Seleção. No entanto, considerável parcela da população sabe os 11 ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal (STF). Vemos membros do Ministério Público dando entrevista coletiva com o auxílio de recursos tecnológicos como power point e advogados aparecendo bastante na mídia, inclusive, sendo entrevistados diante de banner com propaganda do próprio escritório. Judiciário, MP e advocacia são os protagonistas da vez? Isso é bom?
Não vejo isso como protagonismo, mas sim vedetismo, como as mulheres do teatro de revista com as suas coxas de fora. Isso mostra que por trás da falsa aparência de solenidade da Justiça, com togas, rituais, liturgias e pompas, tem a justiça dos homens. Onde há o homem falível, temos todos os vícios. Pretório Excelso, Colenda Câmara, Egrégio Tribunal. Até parecem os deuses do Olimpo, mas são seres humanos, sujeitos à mesma falência que todos podem sofrer. Vemos ambição, vaidade, arrogância e impostura. O homem de muita ciência e sabedoria é discreto e humilde. Vivemos em uma sociedade do espetáculo e até o crime virou reality show. Estamos diante de uma espetacularização da atividade judiciária.
A Lava Jato é bem isso?
Ela está grávida de vedetes que poderiam fazer um trabalho melhor ainda se fossem anônimas, discretas. Não vou citar nomes que são óbvios. Tais pessoas estão fazendo palestras pelo mundo todo. Vaidade todos têm, mas quando ela é objeto de satisfação pessoal, acima do fato que a gera, tudo vira de cabeça para baixo.
Esse sintoma é só de agora? Ele nunca existiu?
Vemos agora o degringolar da prestação jurisdicional. Sempre teve essa fogueira de vaidades, mas em menor escala. Não era tão despudorado o escancaramento das vedetes atuais do Judiciário, do MP e da Advocacia, do topo à base da pirâmide.
E sobre o debate em torno do início ou não da execução da pena a partir da condenação em segunda instância? Qual a sua opinião?
Querem transformar a prisão preventiva em pena, mas o Artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) é o limite. Basta ler. Ou temos seis analfabetos de um lado ou cinco de outro (ironiza Cascione, referindo-se ao recente julgamento do STF que, por 6 votos a 5, negou habeas corpus ao ex-presidente Lula, ratificando decisão do próprio Supremo, de 2016, segundo a qual o início do cumprimento da pena após decisão de segunda instância não viola o princípio da presunção de inocência, ainda que caibam recursos a instâncias superiores).
O sistema recursal brasileiro não é muito extenso, colaborando com a protelação do cumprimento de penas e favorecendo a impunidade de condenados?
A judicialização das relações sociais vai muito além do que deveria ser. É preciso menos burocracia e aumentar o número de juízos de conciliação, desafogando o Judiciário e tornando-o célere. O problema não é o número de recursos, mas a lerdeza da Justiça. Basta um inocente injustamente preso para justificar a liberdade dos réus até a manifestação da última instância.
O Supremo decidindo sobre o início do cumprimento da pena após condenação em segunda instância é um caso clássico de o STF deixar a sua função constitucional típica de julgar para passar a legislar?
Sim, além de legislar mal. Todo mundo põe culpa nas leis, mas o STF abriu as portas da cadeia. O texto original da Lei dos Crimes Hediondos (nº 8.072, de 1990) previa que a pena seria cumprida integralmente em regime fechado. Era previsto tratamento mais rigoroso para tais delitos mais graves, mas o Supremo alegou que havia violação ao princípio da isonomia e afrouxou, permitindo a progressão de pena (após o cumprimento de dois quintos, se o condenado for primário, e de três quintos, se reincidente).
Quais foram as suas experiências como radialista e jornalista?
Comecei a atuar no rádio aos 16 anos, sendo repórter de campo e comentarista de futebol. Fui repórter do jornal Cidade de Santos e também escrevi para a revista IstoÉ, quando ela era dirigida por Mino Carta.
Alguma lembrança desta época?
O ex-presidente Juscelino Kubitschek chegaria ao Brasil em um navio no Porto de Santos. Vários jornalistas o aguardavam no cais. Antes da atracação e desembarque, com um pequeno barco, fui ao costado do navio. Consegui subir pela escada de corda e fiz uma entrevista exclusiva.
Atualmente, qual o seu maior prazer?
É escrever crônicas, conversar com quem tem o que falar, porque sempre aprendi ouvindo.
Consegue estimar a sua produção de crônicas?
São mais de 2.500, considerando a média de uma por semana ao longo de 52 anos.
E ainda não tem nenhum livro com suas crônicas?
Já poderia ter 25, se reunisse 100 crônicas por livro. Isso mostra que não sou tão vaidoso como alguns dizem. Mas é importante salientar que minhas crônicas foram e são publicadas no jornal, na revista, atingindo o seu objetivo naquele momento. Tenho uma página no Facebook na qual posto minhas crônicas. Ela tem mais de 161 mil seguidores, o que prova que rede social não é território apenas para injúrias e pornografias.
(*) Publicado no jornal A Tribuna em 23/abr/2018