Goleiro com CNH vencida que causou morte no trânsito se livra de júri popular
Por Eduardo Velozo Fuccia
A análise da ocorrência de dolo eventual em acidentes de trânsito (quando alguém assume o risco do resultado, mostrando-se indiferente), seja por excesso de velocidade ou influência de álcool, exige uma “análise caso a caso”, apesar da “grande celeuma que se instala em situações semelhantes”.
Após esta ponderação, o juiz Leonardo de Mello Gonçalves, da Vara do Júri de Santos (SP), desclassificou os crimes de homicídio e tentativa de homicídio – ambos dolosos (intencionais) e qualificados pelo recurso que impossibilitou a defesa das vítimas – atribuídos ao goleiro brasileiro Raphael Aflalo Lopes Martins, de 23 anos.
Com passagem pelo Corinthians entre 2013 e 2017, Aflalo disputa neste ano a Primeira Liga do futebol português pelo Clube Desportivo das Aves. Na tarde de 9 de abril de 2017, ao volante de um automóvel BMW 318 iA, ele atingiu o carrinho de lanches e bebidas que era empurrado por Matheus da Silva Souza do Nascimento, de 17 anos.
O acidente aconteceu na Avenida Dr. Epitácio Pessoa, na Aparecida. O adolescente foi arremessado a 13 metros de distância, sofreu graves lesões e morreu. À frente do carrinho estava Charles Nascimento da Silva, padrasto de Matheus, que se feriu sem ficar com sequelas. As vítimas voltavam da praia, onde trabalhavam como ambulantes.
Denúncia
De acordo com o Ministério Público (MP), o goleiro agiu com dolo eventual, porque assumiu o risco de produzir o resultado ao dirigir a 100 km/h, quando o limite de velocidade para aquela via é de 50 km/h. O órgão de acusação requereu, ao final da fase processual de produção de provas, que o réu fosse submetido a julgamento popular.
Raphael Aflalo não poderia dirigir, porque a sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH) estava vencida desde maio de 2016. O goleiro sempre respondeu à ação penal em liberdade. O homicídio qualificado é crime hediondo e a sua pena varia de 12 a 30 anos de reclusão.
Tese defensiva
O advogado Eugênio Carlo Balliano Malavasi (foto) refutou que o cliente agiu com dolo eventual. Segundo ele, a conduta do goleiro se enquadra na “culpa consciente”, na qual o agente prevê o resultado, mas confia que nada ocorrerá. Quanto à velocidade excessiva, o defensor observou que ela caracteriza a imprudência inerente à culpa, não o dolo.
Malavasi também frisou que Aflalo colaborou com as autoridades. “Ele realizou todos os exames requeridos, entre os quais o que atestou não estar sob efeito de álcool ou substâncias entorpecentes. Não fugiu do local do acidente e mostrou sua boa-fé prestando auxílio financeiro à família das vítimas”.
Desclassificação
Na segunda-feira (16), o juiz Mello Gonçalves acolheu a tese da defesa e desclassificou os delitos dolosos atribuídos ao réu para os crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor. Em outras palavras, o goleiro se livrou do julgamento popular e, se condenado, está sujeito a penas muito mais brandas.
As penas do homicídio e da lesão corporal previstas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) são, respectivamente, de dois a quatro anos e de seis meses a dois anos de detenção. Em ambos os casos ainda cabem a suspensão do direito de dirigir e o aumento da sanção, de um terço à metade, se o acusado não possui permissão para guiar ou CNH.
“Em que pese a dor e o sofrimento pela vida ceifada da vítima Matheus, bem como pelas lesões sofridas pela vítima Charles, o devido processo legal deve ser respeitado com o acusado Raphael Aflalo Lopes Martins respondendo pelos crimes praticados de forma correta. Somente assim, a tão esperada justiça estará sendo realizada”, destacou o juiz.
Com base nas provas, o juiz se convenceu de que o goleiro agiu com culpa, na modalidade imprudência. Para o magistrado, ficou demonstrado que o réu não participava de “racha” e nem estava alcoolizado. “Seria temerário atribuir a todo e qualquer condutor envolvido em acidente de trânsito com vítimas fatais dolo eventual”, concluiu.