Apreensão de coca abaixo da média faz juiz registrar sua “estranheza” em sentença
Por Eduardo Velozo Fuccia
A sentença que condenou há cerca de dois anos e meio um caminhoneiro por tráfico internacional de drogas pelo Porto de Santos, o maior do País, por óbvio, reconheceu provadas a materialidade e a autoria do crime. Porém, a decisão registrou a sua “estranheza” quanto à atuação dos policiais civis que prenderam o réu, porque eles não integravam uma unidade especializada na repressão deste tipo de delito e apreenderam uma quantidade de cocaína bem aquém da média em operações do gênero.
Em uma análise que o fez enxergar para além das provas dos autos, o juízo da 5ª Vara Federal em Santos vislumbrou indícios de algo errado na conduta de agentes do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil. O julgador apontou na sentença a necessidade de o Ministério Público Federal (MPF) apurar aquela operação em especial, bem como outras envolvendo policiais da mesma unidade no combate ao tráfico internacional.
O MPF, ao que se saiba, nada apurou. Porém, a Corregedoria da Polícia Civil, a Polícia Federal e o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público Estadual (MPE), investigam agora a suposta ligação de policiais do Deic no desvio de toneladas de cocaína de criminosos e no envio de vultosas quantidades da droga à Europa por meio de navios. Procurado da Justiça, o traficante André Oliveira Macedo, o André do Rap, seria vítima do grupo de agentes corruptos.
Sinal de fumaça
Policiais do Deic prenderam em flagrante o caminhoneiro E.Q.P. no dia 12 de fevereiro de 2019. O acusado dirigia um caminhão carregado com café por uma avenida na zona portuária de Santos quando houve a abordagem. O veículo e o seu carregamento foram levados a São Paulo para serem inspecionados. Segundo os agentes, escondidos no meio da carga lícita a ser exportada, havia 126 quilos de cocaína divididos em tabletes.
O objetivo era embarcar a carga de café no navio MSC Elodie, com destino ao porto francês de Le Havre. Depois, a droga seria encaminhada a Portugal. Em suas alegações finais, o MPF requereu a condenação do réu por tráfico internacional. Ao colocar em xeque a legalidade da ação do Deic, pelo fato de o contêiner ter sido aberto e vistoriado na sede daquele departamento, em cidade diversa ao do local da prisão, a defesa do caminhoneiro pediu a sua absolvição.
O sistema de rastreamento do caminhão acusou um desvio da rota entre Varginha (MG) e o terminal portuário santista onde a carga deveria ser deixada. Sem justificativa, o réu se dirigiu durante o trajeto para o pátio de uma empresa de transporte e turismo. Neste local, ao que tudo indica, a cocaína foi introduzida no contêiner. O juízo da 5ª Vara Federal em Santos condenou o motorista a nove anos e quatro meses de reclusão, em regime inicial fechado, negando-lhe a possibilidade de recorrer em liberdade.
Apesar da decisão condenatória, o magistrado assinalou na sentença algumas observações. “Causa estranheza agentes lotados em delegacia especializada no combate a crimes contra o patrimônio realizarem ação voltada ao combate de tráfico internacional de substâncias entorpecentes […] Tal fato já foi verificado em outras ações penais que tiveram trâmite por esta unidade jurisdicional. Em referidas ações, policiais civis lotados no Deic realizaram apreensões de cargas de cocaína que estavam acondicionadas em meio a cargas de café provenientes de Minas Gerais”.
Ainda conforme a decisão, prolatada no dia 17 de julho de 2019, “nos precedentes citados, assim como se verifica na espécie, foram apreendidos lotes de cocaína em quantidades muito inferiores às que são usualmente apreendidas pela Receita Federal e pela Polícia Federal de Santos, ocorrendo o encaminhamento dos veículos, unidades de carga e motoristas à sede do Deic na Capital, onde foram realizados os flagrantes”.
Sob o fundamento de que “eventuais vícios verificados na fase pré-processual não contaminam a ação penal”, o juiz rejeitou a tese da defesa, mas registrou a necessidade de o MPF dar a “devida atenção” às ações do Deic no combate ao tráfico internacional no Porto de Santos. O advogado do caminheiro recorreu ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) sustentando que a ação policial “restou maculada e duvidosa” por não ter sido realizada pela Polícia Federal ou órgão especializado no combate ao narcotráfico.
A 5ª Turma do TRF3 reconheceu ser “inusitada” a atuação dos agentes do Deic, mas ressalvou que ela não tem a aptidão necessária para inviabilizar a ação penal. Por unanimidade, o colegiado deu parcial provimento à apelação e reduziu a pena para sete anos, nove meses e 10 dias, em regime inicial semiaberto, por entender que o réu fazia jus à benesse do tráfico privilegiado (artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006), por ser primário e não integrar organização criminosa. O acórdão é de 11 de julho de 2020 e, em outubro daquele ano, o motorista progrediu para o regime aberto.
Corrupção sob apuração
Investigação do Gaeco que tem três policiais do Deic como principais alvos veio à tona recentemente. Com autorização judicial, perícia realizada no celular de um deles revelou um grupo de WhatsApp denominado “Trampo Antuérpia”, no qual há diálogos que tratam da remessa de cocaína por meio de navio à Europa. O Porto de Antuérpia, na Bélgica, é um dos principais canais de entrada da droga naquele continente.
Os supostos policiais corruptos agiriam nos mesmos moldes do Primeiro Comando da Capital em sua atuação no tráfico internacional. Eles utilizariam uma carga lícita a ser exportada para a Europa para ocultar grande quantidade de cocaína. Nas conversas do aplicativo de mensagem um agente diz que “é preciso estufar as latas” (encher os contêineres). Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado do Segurança Pública (SSP), os investigados foram afastados da função.
A Polícia Federal apura denúncia de que policiais do Deic descobriram em agosto de 2021 duas toneladas de cocaína em um depósito em Guarujá, onde fica a margem esquerda do Porto de Santos. Destinada ao mercado europeu, a droga seria do traficante André do Rap e nunca apareceu, porque não houve apreensão oficial. Os agentes corruptos teriam contado com a colaboração de dois informantes, possíveis membros da próprio PCC, que desapareceram. Suspeita-se que a facção criminosa os eliminou em retaliação.
Na mira da Corregedoria da Polícia Civil também está uma operação do Deic desencadeada em 28 de dezembro do ano passado nas cidades de Barueri, na Região Metropolitana de São Paulo, e de Praia Grande, na Baixada Santista. Ao todo, três homens foram presos, sendo apreendidos oficialmente 400 quilos de cocaína, seis fuzis, 135 munições e sete coletes à prova de balas. Dias depois, surgiu denúncia anônima de que nos locais vistoriados havia mais 1,5 tonelada da droga.
Balanço divulgado pela Receita Federal em dezembro do ano passado contabiliza 110,9 toneladas de cocaína apreendidas pelo órgão no complexo portuário santista, entre 2013 e 2021. As estatísticas mostram uma evolução na quantidade do entorpecente interceptado, a partir do momento em que escâneres passaram a ser utilizados nas inspeções dos contêineres e foram aprimorados os métodos de análise, a partir do tipo da carga exportada, do porto de destino, do navio empregado no frete e de outros dados.
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