Juíza afasta presunção de dano moral em apagão que afetou estado por 22 dias
Por Eduardo Velozo Fuccia
Em ação relacionada a um apagão que atingiu 13 dos 16 municípios do Amapá, durante 22 dias, uma juíza federal afastou o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) conforme o qual há presunção de dano moral nas hipóteses de má prestação de serviço público de fornecimento de energia elétrica.
Segundo a julgadora, a posição do STJ tem apenas “efeito persuasivo”, sendo ainda inaplicável ao caso concreto para não privilegiar suposta “litigância de massa e predatória”. O advogado do autor recorreu da decisão, sustentando que a sentença é “completamente genérica”, pois a mesma decisão é reproduzida em centenas de ações.
Desprezado pela juíza Mariana Alvares Freire, da 3ª Vara Federal de Juizado Especial Cível de Macapá (AP), o entendimento firmado pelo STJ diz que “o dano moral decorrente de falha na prestação de serviço público essencial prescinde de prova, configurando-se in re ipsa, visto que é presumido e decorre da própria ilicitude do fato”.
“Trata-se apenas de jurisprudência, que não é fonte formal do direito, mas apenas retrata o entendimento reiterado de uma corte em determinado sentido em certa matéria, possuindo apenas efeito persuasivo, ressalvados os casos previstos na legislação aos quais foram atribuídos efeitos vinculantes, o que, todavia, não é o caso”, anotou a juíza.
Conforme a julgadora, como a maior parte da população das cidades afetadas pelo colapso energético foi submetida à mesma situação, “a compensação por danos morais exige a demonstração, no caso concreto, de consequências negativas extras, até mesmo para se aferir se a parte sofreu alguma consequência negativa”.
Mariana Freire alegou que competia ao autor comprovar o dano alegado, pois somente ele vivenciou a situação aflitiva. Além disso, não caberia imputar às rés essa “prova diabólica”, pois impossível a sua produção. Por fim, “num contexto de litigância de massa e predatória”, a julgadora considerou incabível a inversão do ônus da prova.
O artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor (CDC) prevê a inversão do ônus da prova em favor da parte hipossuficiente da relação. Contudo, a juíza observou que é facultado ao magistrado inverter ou não, “de acordo com as minúcias do caso”, para que não gere enriquecimento sem causa.
“Nessa ordem de ideias, nos autos, foi indeferida a inversão do ônus da prova e imputada à parte autora o ônus de demonstrar de forma individualizada as consequências negativas da interrupção do fornecimento de energia elétrica para sua situação particular”, esclareceu a juíza.
A julgadora também negou pedido do advogado Roberto Armond, representante do autor, para ser produzida prova oral. Ela justificou que o juiz deve indeferir as provas que reputar desnecessárias ou protelatórias, salientando não ter havido atendimento no tocante à apresentação de “prova documental”.
“A produção de prova oral é não só desnecessária no caso em comento, mas também não recomendável, pois eventual testemunha arrolada teria interesse ao menos indireto na causa, já que provavelmente também sofreu com as agruras do apagão”, frisou Mariana. Sem haver audiência de instrução, ela considerou que os danos não foram demonstrados.
Apesar de a ação ser julgada improcedente, a sentença reconheceu a responsabilidade solidária de seis das 11 requeridas apontadas na inicial e que a interrupção de energia no Amapá em novembro de 2020 foi um episódio “gravíssimo”, que afetou muitas pessoas, “inclusive direitos de viés personalíssimo delas”.
“A União, ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), a LMTE (Linhas de Macapá Transmissora de Energia), a Eletronorte, o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) e a CEA (Companhia de Eletricidade do Amapá) estiveram envolvidas, de alguma maneira, na interrupção de energia que durou por 24 dias”, declarou a julgadora.
Contudo, a juíza ressalvou que “o Poder Judiciário não pode compactuar com o ajuizamento de ações de modo irresponsável, sem a devida comprovação dos danos que os lesados entendem ter sofrido, de forma a não só materializar o seu direito, mas nortear a fixação de eventual compensação”.
“Fato notório”
O advogado Roberto Armond sustenta em seu recurso, ainda pendente de apreciação, que é incontroverso o ilícito praticado pelas reclamadas ao manter a parte autora por tanto tempo sem energia elétrica, trazendo-lhe enormes prejuízos à sua dignidade de pessoa humana. “O dano existe por si só. É fato notório”.
As razões recursais são amparadas na teoria do risco criado (artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, e artigo 14 do CDC). O artigo 22 da legislação consumerista também dá base ao recurso, porque ele diz que os órgãos públicos devem prestar “serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”.
A Lei 8.987/1995, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão do serviço público, também alicerça o recurso, porque o artigo 6º, parágrafo 1º define como serviço adequado “aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.
Sobre a ausência de prova documental citada na sentença, Armond rebate: “A dimensão do caos social é fato notório e pode ser acompanhada pela internet, mesmo assim, a parte juntou aos autos acervo fotográfico e vídeo de reportagens, todos colhidos dos canais jornalísticos”.
Segundo o advogado, além de não ser oportunizada a possibilidade de conciliação, houve violação ao devido processo legal; cerceamento ao direito de defesa do autor, ao ser impedida a produção de provas testemunhais em audiência, e criação de “fase processual inexistente” nos juizados especiais federais, determinando produção prévia de prova.
Quanto à menção de litigância predatória feita pela julgadora, que anotou a existência de cerca de 25 mil ações protocoladas nas justiças Federal e Estadual sobre a mesma temática por ocasião da sentença, Armond minimizou: “Tem-se que na realidade a quantidade de processos é ínfima em comparação com a extensão do dano perpetrado”.
Conforme o advogado, o apagão atingiu aproximadamente 700 mil habitantes do Amapá. Ele destacou que a própria sentença admitiu esse alcance e reproduziu um trecho dela: “Pode-se chegar à conclusão de que toda a população do Estado foi submetida à mesma situação, sofrendo, em linhas gerais, as mesmas consequências do colapso energético”.
Classificando a sentença de “contraditória”, porque a juíza constatou a participação dos réus no evento tanto de forma omissiva quanto comissiva, o defensor acusou a decisão de ofender o princípio da dignidade da pessoa humana e de “malferir o acesso à jurisdição ao criminalizar a advocacia”.
Armond sustentou que a improcedência da ação se baseou no fato de não ser quantificado o dano e de “inexistir provas de situação extraordinária ao já extraordinário apagão”. Porém, ele frisou que a juíza reconheceu as elementares da responsabilidade civil, salvo o dano in re ipsa, porque recusou aplicar a jurisprudência dominante do STJ.
“A existência de dano moral indenizável não foi considerada na r. sentença, apesar de ser presumido. Ora, a energia elétrica é serviço público essencial e direito básico do cidadão”, concluiu o advogado. Ele postula a condenação solidária das rés ao pagamento de indenização não inferior a R$ 33 mil.
O apagão no Amapá começou após incêndio em uma subestação de distribuição de Macapá, em 3 de novembro de 2020, sendo a situação normalizada no dia 24. A falta de energia elétrica comprometeu o isolamento social por causa da pandemia da Covid-19 e gerou insegurança pública e falta de abastecimento de água, alimentos e combustível.
Foto principal: Anne Nygard/Unsplash
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