Tenente humilha cabo em quartel do Exército e União é condenada a indenizar
Por Eduardo Velozo Fuccia
Ainda que o autor do dano moral esteja comprovadamente identificado, ele é parte ilegítima em eventual ação indenizatória, se o seu ato foi cometido em razão de eventual atividade pública. Nesse caso, a responsabilidade recai sobre o ente ao qual o ofensor está vinculado, conforme decidiu a Justiça Federal ao condenar a União a pagar indenização de R$ 6 mil a um ex-cabo do Exército. Ele foi chamado de “vagabundo” por um segundo-tenente, que ainda lhe impôs castigos físicos.
“A Constituição Federal adota a teoria do risco administrativo, ao prever a responsabilidade civil objetiva do Poder Público por danos provocados por condutas comissivas, devendo, para sua caracterização, encontrarem-se preenchidos os seguintes requisitos: ato da Administração Pública, ocorrência de dano e nexo de causalidade entre o ato e o dano”, observou a juíza federal Juliana Blanco Wojtowicz.
Em razão do valor da causa, o advogado Allan Kardec Campo Iglesias ajuizou a ação de dano moral contra a União no Juizado Especial Federal (JEF) de São Vicente. A ofensa sofrida pelo seu cliente ocorreu na frente de cerca de outros 30 militares, quando ele ainda estava vinculado ao Exército, no quartel 2º Grupo de Artilharia Antiaérea (GAAAe), conhecido por Fortaleza de Itaipu, em Praia Grande, no litoral paulista.
A decisão da magistrada se baseou no parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição Federal, conforme o qual “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Allan Kardec disse que, pela vontade do cabo, a ação seria ajuizada diretamente contra o oficial para não onerar os cofres públicos, embora haja previsão constitucional do direito de regresso. Porém, o Tema 940 do Supremo Tribunal Federal (STF), com repercussão geral, ao interpretar o artigo 37, parágrafo 6º, da CF, concluiu que o agente público é parte ilegítima nesse tipo de demanda, devendo obrigatoriamente figurar no polo passivo o ente estatal ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público.
A julgadora reconheceu a procedência da ação com base em informação prestada pelo próprio Exército, que confirmou as alegações da inicial. Sindicância instaurada pelo comando do 2º GAAAe para apurar a conduta do segundo-tenente concluiu que ele chamou o então cabo de “vagabundo” e também o mandou ir para “vala” e que “tomasse um radiador” (ação de molhar as costas com água gelada).
Embora o oficial tenha sido punido disciplinarmente ao final do procedimento interno, a Advocacia-Geral da União, por meio da Procuradoria-Regional da União – 3ª Região (SP/MS), contestou o pedido indenizatório. “A União não pode ser responsabilizada por todo e qualquer evento (alegadamente) prejudicial ao cidadão, ainda mais quando atua dentro da legalidade”.
Segundo a contestação, além de inexistir conduta ilegal da União, não houve ofensa à dignidade, à imagem ou à reputação social do ex-cabo, que não comprovou ter sofrido a lesão extrapatrimonial. “A parte autora não demonstra com a necessária transparência as supostas dores morais, não as fazendo aparecer com um mínimo de força no ‘mundo real’. Tais dores, assim, ‘misteriosas’, mantêm-se obscuras, imprecisas e incertas”.
Porém, a juíza federal apontou a responsabilidade objetiva da União, em razão do comportamento irregular do seu agente. “O dano encontra-se presente com a lesão moral sofrida pelo autor, confirmada em contestação, ao corroborar que o requerente foi xingado e sujeito a medidas disciplinares indevidas”. Ela destacou, inclusive, que o dano moral “extrapola o mero dissabor” e fixou a indenização em R$ 6 mil, por considerar esse valor razoável para “mitigar o abalo moral sofrido, sem causar enriquecimento indevido”.
Entenda o caso
O autor foi cabo do Exército entre março de 2016 e fevereiro de 2022. No quinto ano como militar, conforme a inicial, ele foi acusado injustamente de transgressão disciplinar pela suposta prática de “trote” em recrutas, sendo punido em procedimento administrativo com detenção por cinco dias. A humilhação sofrida pelo requerente ocorreu durante o cumprimento dessa punição.
Segundo o advogado Allan Kardec, o segundo-tenente exercia a função de oficial de dia (responsável pelo aquartelamento na ausência do comandante) e chamou o cabo de “vagabundo” na frente de recrutas e soldados do efetivo profissional, logo após determinar que ele se retirasse da Guarda. Depois do afastamento do requerente, o superior hierárquico exigiu que ele retornasse correndo.
Por estar com o joelho lesionado, o cabo não pôde correr com a velocidade pretendida pelo oficial, que o mandou, em represália, “ir para a vala” existente no quartel. Porém, como ela estava seca, o segundo-tenente decidiu que o castigo mais adequado seria a aplicação do “radiador”. A tropa utiliza esse termo para se referir ao ato de jogar água gelada nas costas do militar, por dentro da gandola.
“A humilhação sofrida pelo cabo aviltou a sua dignidade e ele perdeu o interesse pelas Forças Armadas, cuja rotina é pautada pelo respeito mútuo entre os servidores e proíbe tratamento indigno, ainda que a pretexto de ser corretivo. Ao ser desacreditado pelo superior hierárquico na frente de mais de 30 subordinados, o meu cliente perdeu a chamada moral da tropa. Ele também foi exposto a castigos físicos enquanto estava com dores em seu joelho, de modo que teve a sua saúde colocada em risco”, avaliou Kardec.
Prerrogativas violadas
Além da ação de dano moral no JEF, o advogado ajuizou ação anulatória no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), que ainda está em curso, para tornar sem efeito a sindicância que puniu o ex-cabo. De acordo com Kardec, houve nulidades no procedimento administrativo, “como a ausência deliberada de notificação para comparecimento nas oitivas das testemunhas”.
Em razão desse fato e de outros casos nos quais atua como defensor de militares do Exército, Kardec chegou a ser alvo de “diligência” sem que houvesse a expedição de mandado de busca e apreensão e comunicação prévia à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Acompanhado de comandados, um coronel se dirigiu à portaria do edifício onde o defensor possui escritório e requisitou ao zelador filmagens das câmeras de segurança.
O coronel alegou que pretendia identificar os clientes do advogado que se dirigiram ao prédio em determinado período, que compreende 15 dias. Por entender que teve as prerrogativas violadas, o advogado reuniu provas e comunicou o episódio à OAB – Seção São Paulo. Para a 1ª Turma Julgadora do Conselho de Prerrogativas da entidade, o coronel “buscou violar o sigilo profissional e desrespeitar a inviolabilidade do escritório”.
Conselheiro de Prerrogativas do órgão, Hélio Freitas de Carvalho da Silveira considerou comprovados “atos de arbitrariedade e de violação” às garantias profissionais do advogado, que limitam, maculam e enfraquecem o direito à ampla defesa de seus constituintes. Presidente da OAB-SP, Patricia Vanzolini convida os advogados e demais segmentos da sociedade para sessão solene de desagravo de Allan Kardec e de seu sócio de escritório, que ocorrerá no dia 10 de abril, às 14 horas, na sede da entidade.
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