Juiz afasta alegação de “brincadeira” e condena pastor por injuriar colega negra
Por Eduardo Velozo Fuccia
Suposto contexto de brincadeira não elimina o teor preconceituoso e depreciativo de expressões referentes à raça de alguém. Desse modo, quem as utiliza comete crime e deve ser responsabilizado. Assim concluiu o juiz Udo Wolff Dick Appolo do Amaral, da Vara Criminal de Itapevi (SP), ao condenar um pastor por injuriar uma colega de trabalho. Em duas ocasiões, o réu comparou o cabelo da vítima a palha de aço, rotulando-o de “duro”, e disse que ela ficaria alegre se fosse jogada uma banana para o alto.
“O dolo, entendido como vontade livre e consciente na direção do curso causal, é evidente. A hipótese de mera ‘brincadeira’ não descaracteriza essa evidência”, destacou o magistrado. Segundo ele, o pretexto de “brincar” alegado pelo acusado não o autoriza a proferir palavras degradantes a outra pessoa, que nunca lhe deu liberdade para tanto, ainda mais em contexto profissional. Réu e vítima trabalharam na mesma indústria. Ela era gerente contábil e financeira, enquanto ele exercia o cargo de gerente comercial.
O pastor foi condenado por dois delitos de injúria racial, nos termos do artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, porque as ofensas que lhe foram atribuídas ocorreram em fevereiro de 2021. Com a Lei 14.532, de 11 de janeiro de 2023, o delito de injúria racial teve a sanção elevada para dois a cinco anos e passou a ser descrito pelo artigo 2º-A da Lei de Racismo (nº 7.716/1989), cuja redação é a seguinte: “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”.
Como os delitos são idênticos e ocorreram em condições semelhantes de tempo, lugar (local de trabalho) e modo de execução, o juiz aplicou a regra do crime continuado (artigo 71 do CP), considerando somente a pena de uma das infrações e elevando-a em um sexto. Ele reconheceu como circunstância desfavorável o fato de as injúrias serem cometidas na presença de várias pessoas, “potencializado o sentimento de repúdio e ofensa à honra subjetiva”, além de sinalizar “audácia e certeza de impunidade na prática”.
A pena imposta foi de um ano e nove meses de reclusão, em regime aberto, além do pagamento de 60 dias-multa, fixados cada um à razão de um décimo do salário mínimo vigente à época dos fatos. Porém, em razão de o réu preencher os requisitos do artigo 44 do CP, Udo Wolff Dick Appolo do Amaral substituiu a sanção privativa de liberdade por duas restritivas de direito: prestação de serviços à comunidade por igual período e prestação pecuniária à vítima de cinco salários mínimos (R$ 7.060,00).
Efeito didático
Os advogados Glauber Bez, Rafaela Machado Martins e Kenia Aparecida Thomé atuaram como assistentes de acusação e ressaltaram o “efeito didático” da sentença. “A decisão de mérito mostra que racismo recreativo, ou seja, ofensa de cunho racial disfarçada de piada, não pode passar impune. A disseminação do racismo em suas várias facetas gera efeitos catastróficos, que antigamente passavam impunes. Não é que o mundo ‘está chato’, nós é que precisamos cobrar da sociedade postura ética e digna para com todos”.
A defesa do réu alegou que ele não teve animus injuriandi (desejo de ofender) em suas declarações e pediu a sua absolvição por não haver o dolo necessário para a caracterização do crime. Em juízo, o acusado disse que que possuía liberdade para brincar e chamar “carinhosamente” a vítima e outros colegas por apelidos. Ele também negou ter agido com preconceito racial, sob a justificativa de ter negros na família e, na qualidade de pastor de igreja, “lidar com pessoas negras”.
Contudo, os argumentos defensivos foram rechaçados pelo juiz. “Seja como for, ‘brincar’ valendo de insinuações com elementos de cor da pele e etnia, atribuindo-lhes teor manifestamente degradante, jamais pode ser tido como aceitável ou tolerável. Nesse contexto, é certo que, nos dias dos fatos, o denunciado efetivamente injuriou a vítima com ofensas raciais nas oportunidades descritas na denúncia”. O julgador frisou que a versão da vítima foi ratificada pelos depoimentos de três testemunhas.
A vítima afirmou que não tinha qualquer intimidade com o então colega de trabalho. Posteriormente, ela soube que outros funcionários da indústria também foram alvos de idênticos comentários por parte do gerente comercial. Em relação às testemunhas arroladas pela defesa, embora tenham declarado possuir boa convivência com o réu, elas não puderam refutar os fatos conforme eles foram narrados na denúncia, porque sequer os presenciaram.
ANPP incabível
O promotor que denunciou o réu considerou incabível ao caso a oferta de acordo de não persecução penal (ANPP). Em sua resposta à acusação, a defesa insistiu no oferecimento do ANPP e, nos moldes do artigo 28-A, parágrafo 14, do Código de Processo Penal, requereu a remessa dos autos à Procuradoria-Geral de Justiça para a revisão da recusa. O procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, manteve a negativa em oferecer a benesse a um suposto autor de injúria racial.
“O acordo de não persecução penal (assim como qualquer medida despenalizadora) em crimes previstos pela Lei 7.716/89 (racismo), e também no artigo 140, parágrafo 3º, do CP – injúria qualificada que envolva elementos de ordem racial, de origem ou etnia –, não é suficiente e necessário à repressão e prevenção do fato”, opinou o chefe do MP estadual, ao determinar o prosseguimento da ação penal. Sarrubbo acrescentou que o réu sequer admitiu o crime, sendo a confissão requisito legal indispensável ao ANPP.
Foto principal ilustrativa: Pexels
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