Guardas condenados por tortura devem cumprir pena em regime aberto, decide STJ
Por Eduardo Velozo Fuccia
É inconstitucional a imposição do cumprimento de pena em regime inicial fechado para os crimes hediondos e os delitos a eles equiparados, prevista no parágrafo 1º, do Artigo 2º, da Lei 8.072/1990. Com esse entendimento, três guardas municipais e dois guardiões cidadãos de Santos, condenados por torturarem uma jovem moradora de rua, não correm mais o risco de serem recolhidos ao cárcere.
O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), deu provimento a agravo em recurso especial interposto pelo advogado Armando de Mattos Júnior, defensor dos réus, para que o regime inicial fechado, fixado na sentença da 6ª Vara Criminal de Santos e mantido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), fosse abrandado diretamente para o aberto.
Os guardas municipais Gelson Rabelo dos Reis, Felipe Fernando dos Santos e Renata Santana Oliveira, além dos guardiões cidadãos Gianlucca Morais Nascimento e Guilherme Guttemberg Moreira, foram condenados a dois anos, quatro meses e 24 dias de reclusão. De acordo com o ministro, a fixação da pena em regime inicial fechado, com base na Lei 8.072, violou o Artigo 33, parágrafo 2º, letra “b”, do Código Penal (CP).
Esta regra do Código Penal estabelece que “o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto”. Ainda conforme o ministro, além de o Código Penal preponderar sobre o tratamento mais rigoroso da Lei 8.072, súmulas do STJ e do Supremo Tribunal Federal (STF) reforçam a aplicação da regra prevista no Artigo 33 do CP.
Em sua decisão, Reynaldo da Fonseca citou as súmulas 440/STJ (“fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito”) e 719/STF (“a imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea”).
“Assim, não tendo o magistrado de origem nem o tribunal local justificado a fixação do regime em elementos outros, mas apenas na previsão legal (da Lei 8.072), necessário o exame do Artigo 33 do Código Penal”, decidiu o integrante da Quinta Turma do STJ. Por meio do recurso especial, a defesa dos acusados também pretendia a absolvição, mas a condenação do grupo foi ratificada. Os réus sempre negaram a tortura.
Cabelos cortados
Natural de Poços de Caldas (MG), usuária de crack e perambulando havia cerca de dois anos e meio pelas ruas de Santos, a vítima foi abordada pelos réus na madrugada de 4 de junho de 2011. Ela dormia com outros quatro moradores de rua em uma pizzaria desativada, na Ponta da Praia. Com 19 anos na época, a jovem disse que o grupo de moradores de rua foi obrigado a entrar em uma Kombi da Guarda Municipal.
Com exceção da jovem mineira, os demais abordados foram sendo liberados durante o trajeto. Enquanto teve a liberdade cerceada na viatura, ela contou que os réus a xingaram, cortaram os seus cabelos com canivete, a agrediram com golpes de cassetete na sola dos pés, desferiram tapas em seu rosto e jogaram em seus olhos um líquido que os fez arder.
A liberação ocorreu em um matagal às margens do Km 53,5 da Via Anchieta, em Cubatão, próximo à Serra do Mar, sendo o caso comunicado à Polícia Civil. O delegado Fábio Pierry instaurou inquérito e identificou os acusados, que foram reconhecidos fotográfica e pessoalmente pela moradora de rua. Com base na investigação policial, o Ministério Público denunciou os guardas e os guardiões.
Conforme a denúncia, exame de corpo de delito – que constatou edema traumático em ambas as plantas dos pés da jovem – e fotografias – que mostram os cabelos dela cortados irregularmente – são provas materiais da tortura, agravada pelo fato de os acusados serem agentes públicos e cometerem o crime mediante sequestro. Em março de 2013, os réus foram condenados, motivando a defesa a recorrer ao TJ-SP e ao STJ.
Ao grupo também foram impostas a perda do cargo ou da função públicos e a interdição para o seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Previstas na Lei 9.455/1997, que define o crime de tortura, essas sanções são efeitos automáticos da condenação. O episódio repercutiu em setores da sociedade civil e órgãos como a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que o repudiaram.