Juiz afasta hediondez ao analisar pedidos de condenados por tráfico internacional
Por Eduardo Velozo Fuccia
“Em canto algum do extenso arcabouço normativo pátrio existe a conceituação ou taxatividade do que viria a ser considerado como um crime equiparável a hediondo”. A observação é do juiz Flávio Oliveira Lauande, da Vara de Execução de Penas Privativas de Liberdade de Santarém (PA), ao acolher pedidos da defesa de um brasileiro e um albanês para afastar a hediondez do tráfico de drogas. Ambos foram condenados sob a acusação de se associarem para enviar 85,9 quilos de cocaína à Europa por meio de navio.
Com a decisão, tomada no último dia 29, os réus poderão progredir de regime conforme regra mais branda, no caso deles, primários, a prevista no artigo 112, inciso I, da Lei de Execução Penal (LEP). Ela exige como critério objetivo o cumprimento de 16% da pena. Caso não fosse afastada a equiparação à hediondez do tráfico de drogas, os sentenciados estariam sujeitos às regras dos incisos V (40%, se for primário) ou VII (60%, na hipótese de reincidência na prática de crime hediondo ou equiparado).
Em duas decisões de 23 laudas cada, referentes ao brasileiro e ao albanês, Lauande justificou que o princípio constitucional da legalidade não abrange apenas os crimes e as respectivas penas, mas “também, e especialmente, rege seu cumprimento”. Desse modo, conforme o magistrado, a execução das penas deve estar prevista em lei, observando-se ainda que o ordenamento jurídico brasileiro não apenas veda a retroatividade da lei penal mais gravosa, como admite a retroatividade da lei penal mais benéfica.
“Silêncio eloquente”
O julgador observou que a Constituição não classifica o tráfico como crime hediondo ou equiparável a hediondo, mas apenas afirma que ele é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. “Não houve, por parte do constituinte, equiparação aos delitos hediondos, visto que apenas se atribuiu determinadas características comuns a todos eles, em claro exemplo de silêncio eloquente”. Segundo ele, por não haver rol constitucional de delitos equiparados, qualquer norma extensiva há de ser expressa e específica.
A ausência de definição por parte da Lei 8.072/1990 (Crimes Hediondos) sobre o que é crime hediondo e equiparado a esta categoria também foi mencionada. “Ela tão somente enumera taxativamente quais são os crimes hediondos, estabelecendo a esses um tratamento mais recrudescido, em termos materiais e processuais penais”. A Lei 11.464/2007 conferiu nova redação ao artigo 2º, §2º, da Lei 8.072/90, estabelecendo ao tráfico idêntica consequência jurídica em termos de execução de pena.
Com a nova legislação, conforme Lauande, “chegava-se à conclusão de que o tráfico de entorpecentes, mesmo não sendo hediondo, era a ele equiparado”. Porém, sobreveio a da Lei 13.964/2019 (pacote anticrime), que revogou expressamente o artigo 2º da Lei de Crimes Hediondos. “Ou seja, foi revogado o único artigo de lei que estabelecia expressamente que o tratamento diferenciado conferido aos crimes hediondos seria também conferido ao tráfico de entorpecentes”.
Lei mais benéfica
Como o parágrafo 2º do artigo revogado previa as frações de pena diferenciadas para progressão de regime de pena, a Lei 13.964/2019 representa, no entendimento do magistrado, “uma lei penal nova benéfica – na medida em que permite a progressão de pena como delito comum aos apenados por tráfico de drogas – devendo retroagir para alcançar situação passadas, mediante requerimento ao juízo da execução penal (Súmula 611 do Supremo Tribunal Federal e artigo 66, inciso I, da LEP)”.
Preceitua a Súmula 611 STF que, “transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna”. O artigo 66 da LEP diz que “compete ao Juiz da execução: I – aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado”. No prosseguimento de sua fundamentação, o julgador apontou o “esvaziamento” do artigo 112 da LEP, que trata das novas frações para progressão de regime introduzidas pelo pacote anticrime.
“As previsões contidas na nova redação do artigo 112 da LEP acerca de supostos delitos equiparados a hediondos restam completamente esvaziadas, ante a ausência de previsão legal expressa acerca do seu conteúdo, bem como a impossibilidade de criação dessa figura mais gravosa por outro meio, como interpretação extensiva ou analogia”, sustentou o magistrado.
“Nenhuma legislação elenca quais delitos são equipados aos hediondos: Constituição Federal, Lei dos Crimes Hediondos, Lei de Execuções Penais ou a Lei de Drogas. Todas restaram omissas, não podendo o Poder Judiciário fazer uma interpretação extensiva no ponto, sob pena de sucumbirmos princípios basilares da democracia como os princípios da legalidade e da anterioridade”, frisou Lauande.
O juiz também ponderou que não se pode validar a equiparação à hediondez por meio de um critério de exclusão. O novo parágrafo 5º do artigo 112 da LEP, expressamente, não considera o tráfico privilegiado (artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006) como equiparado a crime hediondo. “Não constitui fundamento para que o caput do artigo 33 ou outro delito, seja definido como equiparado a hediondo, simplesmente porque uma norma que beneficia o apenado não pode ser interpretada para prejudicá-lo”.
Os pedidos à vara de execução de Santarém foram formulados pelos advogados Anderson Domingues, Guilherme Vaz e Áureo Tupinambá, que contaram com a colaboração do estagiário Pedro Garbelini. Eles enalteceram a decisão do juiz, “que deverá se tornar importante precedente, porque está lastreada em análise profunda e coerente sobre todo o sistema jurídico, desde os princípios norteadores do Direito, passando pela Carta Magna e legislação infraconstitucional”.
Cocaína no casco
Os réus foram condenados a 14 anos de reclusão por tráfico internacional de drogas e associação para o tráfico pela 1ª Vara Federal Criminal de Santarém, mas aguardam a apreciação de recurso de apelação no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Segundo denúncia do Ministério Público Federal, eles são responsáveis pela cocaína que a Polícia Federal encontrou no casco do navio Skyros, que zarparia do porto daquela cidade paraense para a Grécia.
Acondicionado em duas sacolas de plástico impermeáveis, o entorpecente foi afixado na parte externa do cargueiro, abaixo da linha da água, por mergulhadores contratados pela organização criminosa. O albanês e o brasileiro foram presos em flagrante na Rodoviária de Santarém. Eles estavam na iminência de embarcar em um ônibus com destino a Belém.
Foto acima do título: Divulgação/Depen-MJ
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