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23/07/2017

PL permite a delegado aplicar medidas de proteção a vítima de violência doméstica

Raquel Kobashi Gallinati é presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo

Por Raquel Kobashi Gallinati (*)

Bem acertado o Projeto de Lei (PL) que permite ao delegado de polícia aplicar, provisória e cautelarmente, medidas de proteção às vítimas de violência doméstica. Isto porque o delegado, qualificado pela formação técnico-profissional policial, consiste na primeira autoridade pública operadora do direito no sistema de justiça criminal. Ademais, exerce imprescindível papel de anteparo da sociedade e da ordem legal vigente.

O crime de violência doméstica contra a mulher consuma-se de maneira rápida. Na maioria das vezes, vem antecedido pela evolução de uma série de prévias agressões, sejam verbais ou físicas, exigindo uma solução célere e eficaz para conter o ataque do agressor e proteger a vítima.

As providências judiciais, por demandarem tempo, encorajam o agressor, que se vê impune, a praticar crimes mais graves, chegando muitas vezes ao homicídio.

As significativas mudanças legislativas e adequações à ordem constitucional, após a superação do sombrio período ditatorial militar, deram início a uma moderna forma de se pensar as medidas cautelares pessoais no Brasil, de modo a compatibilizar tais providências às circunstâncias específicas de cada caso.

Nesse panorama, o PL 36/15, do deputado Sergio Vidigal, que define procedimentos de atendimento policial e pericial especializados em casos de violência contra a mulher, foi aprovado no plenário da Câmara dos Deputados na forma de um substitutivo da Comissão de Seguridade Social e Família, de autoria da deputada Flávia Morais.

O texto acrescenta artigos à Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) para estabelecer novas diretrizes ao atendimento da vítima ou de testemunha de violência doméstica. O projeto que foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal (Secretaria de Apoio à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) tramita pelo Senado, tendo como relator o senador Aloysio Nunes Ferreira, como PLC 7/2016, e está com a relatoria. (último estado, datado do dia 11/08/2016).

Uma das inovações do aludido projeto é a salutar função conferida ao delegado de polícia de aplicar, provisoriamente até decisão judicial, medidas protetivas de urgência para a vítima e seus dependentes. A inovação seria a inclusão do artigo 12-B na Lei Maria da Penha, possibilitando a decretação pela autoridade policial dessas medidas caso verifique a existência de risco à vida ou às integridades física e psicológica da vítima ou de seus dependentes.

Prevê o art. 2° do aludido PL 36/15: A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos 10-A, 12-A e 12-B: …

 

Art. 12-B. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, a autoridade policial, preferencialmente da delegacia de proteção à mulher, poderá aplicar provisoriamente, até deliberação judicial, as medidas protetivas de urgência previstas no inciso III do art. 22 e nos incisos I e II do art. 23 desta Lei, intimando desde logo o ofensor.

§ 1º O juiz deverá ser comunicado no prazo de vinte e quatro horas e poderá manter ou rever as medidas protetivas aplicadas, ouvido o Ministério Público no mesmo prazo.

§ 2º Não sendo suficientes ou adequadas as medidas protetivas previstas no caput, a autoridade policial representará ao juiz pela aplicação de outras medidas protetivas ou pela decretação da prisão do autor.

§ 3º A autoridade policial poderá requisitar os serviços públicos necessários à defesa da vítima e de seus dependentes.

 

Durante muito tempo a dicotomia estabelecida no processo penal cautelar consistia ou no total cerceamento da liberdade ou em sua concessão plena – sem disponibilizar uma solução intermediária. Esta dualidade ensejava uma segregação cautelar demasiada, além de elevados gastos para a movimentação de todo um aparato para o encarceramento e manutenção de indivíduos custodiados provisoriamente.

A jurisdicionalidade é própria das medidas cautelares. Nessa conjuntura, referidas medidas concedidas diretamente pelos delegados consubstanciam providências legais singulares, justamente porque, conquanto não decretadas, são mantidas sob constante e regular controle pelo Poder Judiciário. Tais medidas não perdem a sua essência de cautelaridade, sobrepujando amparadas todas as suas outras características. Ademais, a ampliação das atribuições legais ao delegado prestigia o contexto histórico e jurídico dessa carreira, cuja origem está atrelada aos juízes no direito brasileiro, revelada na conservação de funções judiciais como a análise das capturas de suspeitos em estado flagrancial, o arbitramento de fiança e a expedição de alvarás de soltura.

As formas de repreensão oferecidas pelo Poder Público no combate às práticas delituosas evoluíram, fomentando um movimento a favor da cautelarização da persecução penal brasileira, eclodindo em novas formas de resposta estatal na repressão criminal. Esse movimento enfatiza a dignidade da pessoa humana conjugada com a garantia do estado de inocência, consagrado na Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

A eficácia das mudanças trazidas pelo projeto de lei ao processo penal, no que tange à atividade de polícia judiciária, reflete com a abordagem daqueles que terão suas atribuições alteradas, direta ou indiretamente, pela nova lei, nos procedimentos, nos volumes de processos, na celeridade e, sobretudo, no atendimento das demandas, além da eficácia nas ações executadas. Com a nova sistemática legal, os delegados atuarão efetivamente na cautelarização durante a etapa extrajudicial do inquérito policial.

O PL viabiliza boas alternativas ao encarceramento provisório em massa, de modo a fortalecer a previsão legal de outras medidas cautelares coercitivas que, sob um enfoque constitucional e garantista, substituem a prisão por medidas menos gravosas à pessoa humana de um lado, e de outro otimizam a eficiência e a prestação estatal na persecução criminal.

Vale ressaltar que as medidas cautelares são complementares ao processo principal e servem como instrumento garantidor de eficácia, destinando-se a prevenir a ocorrência de danos de difícil reparação ou mesmo irreparáveis, sendo decretadas sempre de maneira provisória. Tais medidas podem ser revogadas ou substituídas de acordo com o caso concreto e o seu conteúdo é examinado de maneira sumária, não se exigindo um juízo de certeza sobre os fatos.

O substitutivo aprovado prevê que, dentre as possíveis medidas, que serão homologadas ou revistas pelo juiz no prazo de até 24 horas, estão a proibição de determinadas condutas ao agressor, como se aproximar da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, com limite mínimo de distância entre eles; a proibição de manter contato com a vítima, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; e a proibição de frequentar determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da mulher ofendida já em seu primeiro e emergencial contato com o Poder Público, numa delegacia de polícia, órgão prestador de serviço ininterrupto à população, seja nas madrugadas, nos finais de semana ou nos momentos mais difíceis e tumultuados da vida dos cidadãos.

Ainda de acordo com o projeto, outras medidas que poderão ser tomadas são o encaminhamento da vítima e de seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento e a recondução da ofendida e de seus dependentes à sua residência após afastamento do agressor.

Vários são os benefícios da implantação dessa sadia inovação legislativa proposta, dentre os quais se destacam os ganhos sociais decorrentes da melhoria da qualidade e da eficiência no atendimento público à comunidade e, sobretudo, às vítimas de violência doméstica em todas as suas modalidades. Ainda podem ser citadas a celeridade e a economia no trâmite dos expedientes nos fóruns, na medida em que os cartórios reduzirão os volumes dos processos relativos aos delitos envolvendo violência doméstica.

Tal providência propiciará maior tempestividade da prestação estatal pelo delegado. Primeira autoridade a ter contato com a vítima e com o real cenário do crime, ele sabe quais as medidas protetivas indicadas para o caso, reduzindo a sensação de impunidade, com reflexos diretos na diminuição da criminalidade em delitos de violência doméstica, bem como o resgate da credibilidade da polícia judiciária que receberá ferramentas legais mais ágeis para o trabalho em prol da realização da justiça.

O delegado, na direção da atividade de polícia judiciária, ao determinar medidas protetivas de urgências em crimes que envolvam violência doméstica contra a mulher, não apenas antecipa uma solução adequada e evita o agravamento do problema, o que é extremamente relevante no contexto social e comunitário, como também exalta e protege os direitos de mulheres vítimas de violência doméstica, com a rapidez que a vida real reclama e a legalidade que o Estado de Direito impõe.

Tem-se, portanto, uma medida harmônica aos diplomas internacionais de direitos humanos, resguarda direitos e garantias fundamentais, e propicia a transformação e a contenção de práticas criminosas, evitando a sua progressão.

Os direitos correm risco de se tornarem “letra morta” na ausência de instrumentos que assegurem seu cumprimento. Nesse campo, o delegado desempenha papel fundamental como aplicador da lei e garantidor da efetivação dos direitos, de modo que o projeto de lei 7/2016 representa exímio instrumento nesse sentido.

A polícia deve estar amparada no respeito aos direitos e garantias individuais e sociais. A sociedade e seus cidadãos merecem a melhor atuação possível das instituições públicas, órgãos tuteladores da ordem e da segurança, sendo o projeto de lei inegável proposta construtiva no atual cenário.

 

(*) Formada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduada em ciências criminais, concluiu mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Foi advogada por mais de 12 anos, até ingressar na Polícia Civil. Em 2012, tornou-se delegada de polícia. Coautora de obras jurídicas, exerceu o magistério em cursos preparatórios para carreiras policiais. É a primeira delegada eleita presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo.

 

Referências:

http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125364

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Artigo
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