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20/07/2017

Teoria da Cegueira Deliberada ganha força no Direito Penal

Delegado Bruno Lazaro cita diversos autores em seu estudo sobre tema relevante a atual

Por Bruno Mateo Lazaro (*)

A Teoria da Cegueira Deliberada foi inicialmente suscitada na Suprema Corte dos Estados Unidos, teoria também denominada de “Willful Blindness Doctrine” (Doutrina da cegueira intencional). Com efeito, esta teoria reconhece a ilicitude penal para os casos de autores de delito que procuram se escusar da responsabilidade criminal, sob a alegação do desconhecimento do fato delitivo.

Na verdade, o autor age de forma intencional e premeditada, com o fim específico de se colocar em uma posição de desconhecimento e neutralidade em face aos fortes indícios de ilicitude. Temos uma situação em que o autor enxerga fortes indícios de ilicitude, porém, como forma de se escusar de eventuais reprimendas, age de forma atávica e procura se proteger com o manto do desconhecimento.

Apesar de se apresentar nova, a referida teoria já foi utilizada pelos nossos tribunais superiores, em especial nos casos de crimes eleitorais, e fortemente empregada nos casos de lavagem de dinheiro. No entanto, falta ainda um estudo mais aprofundado da teoria, no sentido de apontar de forma objetiva os requisitos essenciais para a caracterização de uma situação de “cegueira deliberada” e, ou, quando se tratar de “cegueira não deliberada”.

Importante destacar que a Suprema Corte norte-americana entende que para a caracterização da “cegueira deliberada” são necessários dois elementos: (1) existência de uma provável ilicitude; (2) que o autor atue de forma consciente e voluntária para se quedar alheio aos ilícitos praticados.

Urge refletir que, apesar da referida teoria ser aplicada na maioria dos crimes de lavagem de dinheiro, nada impede a sua aplicação para outras espécies de crimes, por exemplo, receptação dolosa e participação de delitos em concurso de agentes.

Outra questão que vem sendo amplamente debatida é a situação do autor saber verdadeiramente dos ilícitos praticados e procurar se escusar, provendo atos que indiquem a sua “cegueira” ou, do contrário, se é necessário que o autor se coloque em um desconhecimento real do que realmente está a acontecer.

Em referência ao tema, o juiz federal Sergio Moro esclarece: “admitindo o dolo eventual, o crime de lavagem do art. 1º restaria configurado ainda que o agente não tivesse o conhecimento pleno da origem ou natureza criminosa dos bens, direitos ou valores envolvidos, bastando que tivesse conhecimento da probabilidade desse fato, agindo de forma indiferente quanto à ocorrência do resultado delitivo”.

Sob esta linha de argumentação, destaca a necessidade de haver inicialmente sinais de um eventual ilícito, ou seja, fumus comissi delicti, e posteriormente a este, que o autor realize condutas que se coloquem em uma situação de “cegueira”.

Outra questão que vem sendo debatida é a interpretação técnica, sob o ponto de vista do Direito Penal, do fato do autor se colocar em uma situação de “cegueira”, como deve ser compreendido.

Vem ganhando campo na doutrina o posicionamento de que a conduta do autor que se coloca de forma deliberada em “cegueira” seria vista como uma situação de dolo eventual ou em alguns casos aplicando ao caso o dolo direto, quando autor procura adotar a “cegueira” como manto de proteção, mas que sabe estar havendo ou já ter havido delito.

No entanto, devemos observar as principais teorias do dolo: I – Teoria da Representação; II – Teoria do Sentimento; III – Teoria da Probabilidade; IV – Teoria da Vontade/Aceitação.

A primeira teoria (representação) destaca que, para a concretização de uma situação de dolo eventual, basta que o autor tenha sob o seu elemento cognoscível a representação do resultado lesivo futuro.

A segunda teoria, (sentimento) já procura trazer aspectos subjetivos do autor em relação ao bem jurídico que será lesado, entendendo haver dolo eventual quando o autor age com indiferença em relação à futura lesão do bem jurídico, independe do seu querer em relação à lesão.

Conforme a terceira teoria (probabilidade), para haver uma situação de dolo eventual é necessário que o autor tenha ciência da probabilidade real de lesão ao bem jurídico.

Por último, temos a Teoria da Vontade/Aceitação, que entendemos ser a que melhor se enquadra à aplicação da teoria da “cegueira deliberada”.

E assim ensina Damásio E. de Jesus: “formulada pela doutrina alemã, não basta a representação do evento e a consideração da possibilidade de sua causação, sendo necessário que o sujeito consinta em sua produção. Para esta doutrina, são exigidos dois requisitos: 1º) intelectivo: que o sujeito preveja a possibilidade de produção do resultado em face dos meios utilizados e do fim almejado, não se exigindo consciência da probabilidade; 2º) volitivo: que consinta em sua concretização, reconhecendo e conformando-se com essa possibilidade”.

Deste modo, para que estejamos verdadeiramente diante de uma situação de “cegueira deliberada”, devemos nos ater ao fato de que o autor, muitas vezes, não manifesta o desejo direto pelo evento criminoso, bastando que ele, por meio de seu “desconhecimento intencional”, exteriorize tacitamente o desejo de aceitação do resultado.

Outra hipótese que podemos nos deparar diante da aplicação da cegueira deliberada é o caso em que o autor deseja o resultado criminoso, no entanto, procura se ocultar por meio de atos materiais que traga a falsa ideia de “desconhecimento”.

Nestes casos, muitas vezes, são eles os “manifestantes cegos”, que se revelam como os verdadeiros líderes e utilizam seus comparsas como “longa manus” para os atos criminosos, sempre é claro, se utilizando do aparente manto do desconhecimento para se escusar de futuras sanções.

Contudo, entendemos que a teoria da “cegueira deliberada” merece ser enquadrada não sob o manto da relação de causalidade – conditio sine qua non, mas sim, sob a égide da imputação objetiva da conduta.

Pois, nos casos de cegueira deliberada, em muitos casos, temos a omissão como fator principal de aplicação da teoria. Decerto, que à aplicação da teoria da causalidade, aos casos de conduta omissa, há uma grande dificuldade de aplicação, uma vez que do nada, nada surge.

Porém, acredito que, havendo aplicação da teoria da imputação objetiva para os casos de “cegueira deliberada”, é possível ao aplicador do Direito uma leitura da conduta sob o ponto de vista do risco permitido e proibido.

O conceito de risco permitido pode ser compreendido em, apertada síntese, como todas as atividades que, pela sua própria natureza, acabam expondo a um risco social, aceitável e tolerável. Assim, por exemplo, construir uma casa, andar na calçada, mergulhar em uma praia ou um rio são condutas aceitas, porém, que no seu âmago, aquiesce a um risco tolerável.

Enquanto que, temos como risco negativo, ou proibido, todas as condutas humanas, dolosas ou culposas, que exponham a uma situação de ofensa a bem jurídico, não aceitável pelas normas vigentes, traduzindo, verdadeiramente, em um risco proibido.

Neste trilhar, temos como resultado da “cegueira deliberada” na modalidade de omissão, todo resultado normativo que incide objetivamente ao um bem jurídico tutelado por uma norma.

Assim, basicamente, ao se prostrar o autor de forma intencional ou não, a uma situação de “cegueira”, temos o fato, inicialmente, como violador do princípio da “confiança” social.

O princípio da confiança foi inicialmente aplicado na jurisprudência alemã, segundo diversos autores. Ele teve sua aplicação inicial por conta do aumento excessivo do tráfego motorizado, e como consequência, o aumento do número de acidentes.

O princípio da confiança refere-se à situação na qual uma pessoa age de acordo com as regras avençadas pela sociedade (para uma determinada atividade) e acredita que a outra também agirá conforme tais regras. Trata-se de um orientador da conduta humana, que visa a organizar os comportamentos sociais, de forma que um sujeito saiba o que esperar do outro. Do contrário, seria muito difícil o convívio humano.

Eis um exemplo: quando o pedestre atravessa a rua sobre a faixa determinada para a sua passagem, acredita firmemente que o motorista que está parado no sinal vermelho lá permanecerá. Também é o caso do médico cirurgião quando vai realizar seu ofício. Ele confia que a enfermeira empregou todos os procedimentos de higienização do centro cirúrgico e dos devidos instrumentos para que ele possa utilizá-los adequadamente”.

Assim temos o caso, por exemplo, de uma mãe que não procura saber como seu filho desempregado traz para casa objetos de valor e dinheiro, ou uma esposa que cede sua conta bancária para que o seu companheiro realize transações bancárias suspeitas.

Nestes dois casos, a mãe e a esposa estão a violar o princípio da confiança social. Haja vista que todo cidadão de bem espera que as pessoas somente deixem entrar coisas lícitas nas suas residências, o mesmo se espera, que toda pessoa de bem, somente autorize transações bancárias em suas contas, quando se revelarem lícitas.

O bem jurídico lesado pela conduta do “filho” e do “marido” sofre agravante, por conta da conduta da “mãe” e da “esposa”.

A responsabilidade penal de ambas, sob o enfoque da “cegueira deliberada”, é plenamente admissível e juridicamente aceita. Não estamos aqui a projetar uma situação de Responsabilidade Penal Objetiva, o que somos totalmente contrário, mas dando à conduta daqueles que se colocam em uma situação de “cegueira intencional” a necessária reprovação jurídica para sua conduta.

O Direito Penal passou por várias transformações, haja vista que regula a conduta social, e o homem é um ser em constante evolução.

A teoria da “cegueira deliberada” é hoje uma novidade jurídica, que ainda requer um estudo mais aprofundado, mas desde já, deixa sinais de sua importância, em especial para os casos de crime organizado, em que os autores procuram escusar das responsabilidades penais, sob a esteira de um desconhecimento intencional, sobre tudo que está acontecendo em sua volta.

Seja bem-vinda!

 

(*) Delegado de polícia do Estado de São Paulo, especialista em crimes financeiros

 

 

Referências:

  1. https://mmwrwhitecollar.files.wordpress.com/2016/01/bassam-rotated.pdf.
  2. MORO, Sérgio Fernando; GOMES, Abel Fernandes. Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 97
  3. JESUS, Damasio. Direito Penal. São Paulo: Saraiva,1999. p. 287.
  1. FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal – A nova Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense,1985, p. 172.
  1. ROXIM, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico Penal. Rio de Janeiro e São Paulo. Renovar 2000.
  2. https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121923753/o-que-se-entende-por-principio- da-confianca.
  3. LOPES, Alexander Neves. O Direito Penal do Inimigo: e os crimes contra a ordem pública e tributária. São Paulo: Fonte Editorial, 2016.
  4. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 255-280, 2016.
  5. PEREIRA, Flávia Siqueira Costa; Nascimento, Adilson de Oliveira. A teoria da imputação objetiva e o princípio da confiança no direito penal: considerações à luz do funcionalismo de Claus Roxin. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 13, n. 23, p. 47-100, 2014.
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