Sentença sem fundamentação absolve dois policiais e TJ-BA anula decisão
Por Eduardo Velozo Fuccia
O dever de o juiz motivar as suas decisões é uma garantia processual e ignorá-lo significa relegar o contraditório e a ampla defesa a meros formalismos. Com base nesse entendimento, de ofício, o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) declarou nula, por carência de fundamentação, sentença que absolveu sumariamente dois policiais militares acusados de um homicídio consumado e outro tentado.
“No tocante aos indícios de autoria criminosa, cingiu-se a sentença a indicar – por intermédio de único parágrafo composto por apenas dois períodos – que ‘as provas produzidas revelam a suscitada excludente de ilicitude da legítima defesa própria e de terceiros’, sem, contudo, identificar, ainda que minimamente, quais os efetivos elementos probatórios que serviram de lastro a tal conclusão”, diz o acórdão unânime.
Os crimes ocorreram durante desentendimento em um bar no bairro Mussurunga, em Salvador, na madrugada de 5 de fevereiro de 2021. Dois homens foram baleados pelos policiais militares. Mesmo ferida, uma das vítimas conseguiu entrar em seu carro e o dirigiu até um hospital, onde foi salva graças ao atendimento médico recebido a tempo. Atingida na região torácica, a outra não teve igual sorte e morreu no estabelecimento.
O representante do Ministério Público (MP) pediu a dispensa dos interrogatórios dos policiais em juízo e se manifestou pela absolvição de ambos em suas alegações finais. Em decisão de duas laudas, o juiz Paulo Sérgio Barbosa de Oliveira, da 1ª Vara do Júri da capital baiana, entendeu que os réus agiram em legítima defesa e os absolveu com base no artigo 415, inciso IV, do Código de Processo Penal (CPP).
Diz a regra que “o juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime”. Porém, a desembargadora Ivone Bessa Ramos, da 1ª Câmara Criminal da 1ª Turma do TJ-BA, não vislumbrou a exigível fundamentação. Ela foi relatora do recurso de apelação interposto pelo advogado constituído pelo sobrevivente para atuar como assistente da acusação.
O recorrente sustentou que as vítimas estavam desarmadas e os acusados não agiram em legítima defesa, devendo ser pronunciados e submetidos a júri popular. Em suas contrarrazões, os advogados dos policiais militares requereram o desprovimento da apelação e a manutenção integral da sentença que os absolveu. Devidamente intimado, o MP informou nada ter a se manifestar.
Mérito prejudicado
Ivone Ramos considerou prejudicada a apreciação do mérito da apelação, porque identificou um “vício insanável” quanto à motivação da sentença. Com esse cenário, a relatora anotou que o caso é de se declarar, de ofício, a nulidade da absolvição sumária dos réus, por carência de fundamentação, para que nova decisão seja proferida em seu lugar. A Procuradoria de Justiça havia se manifestado nesse sentido.
De acordo com a relatora, se porventura fosse afastado o imperativo de fundamentação das decisões – previsto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, e artigo 381, III, do CPP –, não haveria como diferenciar aquelas emanadas do livre convencimento motivado do julgador daquelas decorrentes do seu simples arbítrio. Além disso, ficaria comprometida a possibilidade de efetivo controle, notadamente pela via recursal.
A julgadora acrescentou que a fundamentação da sentença, enquanto garantia, não se resume à exposição das razões de decidir adotadas pelo magistrado. Ela engloba o concreto enfrentamento das teses das partes e a efetiva análise das provas que produziram, o que não houve no caso dos autos. Para a relatora, a decisão recorrida limitou-se à veiculação de “assertivas superficiais acerca dos fatos”.
Apesar de a ação versar sobre homicídios, consumado e tentado, na sentença sequer há menção de laudo pericial comprobatório do óbito e de eventuais lesões corporais. “Não se trata, na espécie, de simples concisão do édito, mas de verdadeira omissão judicial em relação à análise do acervo probatório, ao enfrentamento das teses deduzidas pelas partes e à interpretação da normatividade aplicável ao caso”, concluiu Ivone Ramos.
A Procuradoria de Justiça manifestou em seu parecer recursal estranheza pela decisão impugnada. “Afigura-se inviável que o douto magistrado a quo, data máxima vênia, decida um feito de tamanha complexidade com fundamentação da sentença resumida em cinco linhas, e sem referência expressa a qualquer das provas produzidas na apuração do fato delituoso, citando, genericamente, o cenário em que ocorreu o crime”.
Conforme a sentença anulada, “as provas produzidas revelam a suscitada excludente de ilicitude da legítima defesa própria e de terceiros, haja vista que ocorreu uma briga generalizada e nessa refrega os acusados foram agredidos por ambas as vítimas, estando uma delas armada. Desse modo, com o intuito de se defenderem, sem qualquer excesso no revide, atuaram em legítima defesa própria e de terceiros”.
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